A cultura e a história dos povos estão inscritas nos objectos materiais (como trajes e pinturas) e imateriais (como a poesia e o pensamento) que vão produzindo. A civilização persa é uma das mais antigas da humanidade, com uma riqueza e complexidade demonstradas nas contribuições valiosas que deu nos campos da ciência e da arte. Uma das suas peças mais reconhecidas, produzida hoje no actual Irão, é o tapete persa.
Visto muitas vezes como um mero artigo decorativo de luxo, este tipo de obras artesanais tecem-se de uma longa memória cultural. Esta memória está entranhada nas actividades quotidianas do presente. As pessoas oram e comem, conversam e dormem, brincam e amam, sobre um tapete. Daí que o grande poeta sufi Rumi tenha escrito estas linhas no séc. XIII: «Em solene dignidade, eu costumava sentar-me / no meu tapete para orar. / Agora, as crianças estão ao meu lado / e fazem-me caretas.» O documentário de João Mário Grilo, O Tapete Voador (2008), reflecte sobre esta relação entre ancestralidade e familiaridade, sublinhando a dimensão mística destes objectos. Os desenhos geométricos, simples e claros, padronizados e repetidos, dão conta da insuficiência radical da existência humana assim como da necessidade de evitar os perigos espirituais da idolatria.
A pretexto de uma exposição de tapetes persas no Museu de Arte Antiga, Grilo começa por evocar a relação de Portugal com estas peças e com a cultura de onde emergem. A figura do filme é a viagem. Acontecem várias, pelo Irão, que vão desvendando a importância dos tapetes no dia-a-dia dos persas e a mudança para padrões geométricos introduzida com o Islão. É particularmente poderoso o modo como O Tapete Voador procura revelar a dimensão material da produção dos tapetes — do pasto das ovelhas à tecelagem, passando pela tosquia e pela tintagem natural. Esta última permite ainda perceber o equilíbrio procurado entre a modernização dos meios e a preservação da tradição. Viajar para documentar estes aspectos faz sentido porque são os próprios tapetes que convidam à viagem.
Cada tapete segreda histórias. Daí que os mais antigos sejam restaurados, guardando as marcas que o tempo imprimiu neles. No final, há uma referência a coleccionadores como Calouste Gulbenkian e Sigmund Freud. É na casa londrina de Freud, pejada de objectos de diferentes culturas, que o filme termina. Num museu ou numa casa distante do Irão, estes tapetes perdem contacto com as suas raízes. Mas podem ganhar um olhar respeitoso, sensível à sua beleza, e consciente dos seus sentidos. Podem também ser reinventados para outros voos.
Sérgio Dias Branco*
* Coordenador de Estudos Fílmicos e da Imagem (Mestrado em Estudos Artísticos) na Universidade de Coimbra
**O autor escreve de acordo com a antiga ortografia