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Tamara de Lempicka

É como se, simultaneamente, tivesse os dois extremos opostos da realidade, aqueles sem os quais nenhum conhecimento é cabal. É como se nela, num ápice de momento, simultaneamente, estivessem o mais luminoso e o mais sombrio. É saber que os legítimos desejos da carne, se não existirem com um objectivo absolutamente elevado, são tão vazios quanto mais afastados desse objectivo estiverem. Uma pintura tão explicitamente mundana é, simultaneamente, tão explicitamente sagrada.

É o centauro com tão vigorosa, irrestrita, animalidade que não tem qualquer hipótese de desprender-se do solo (do rasteiro) mas, ao mesmo tempo, está (já está) desprendido porque atira a seta para o mais alto, o inalcançável, a região, o ponto, que só os eleitos (os bafejados com o Divino) atingem.

Tamara não apenas se assumia como o que era: esposa, mãe, lésbica, culta, cosmopolita, refinada, viajada, secreta, segura, livre – infinita, digamos. Com um físico tão fremente, um tão vigoroso sentimento, uma tão perfeita intuição do humano (no que, claro, se incluem os seus meandros), uma posição social de topo, estava, simultaneamente, no mais fundo do seu tempo e absolutamente além do seu tempo ou, para usar outro termo, foi uma visionária.

A viagem a Itália e às suas ensolaradas cidades e museus com que a avó a brindara, fê-la descobrir a beleza que a sua Polónia natal (?) não poderia propiciar-lhe. E se o supremo Ingres, esse cimeiro cume do desenho, com o seu virginiano rigor (Ingres nasceu num dos últimos dias de Agosto) lhe inculcou disciplina tal que é bem sua discípula muitas décadas após o passamento do Mestre, o Cubismo (ma non troppo…) e o

Expressionismo só idiossincrasicamente a tocaram. Já aqui voltaremos.

É tão pressuposto que a Riqueza atrai Arte como a inversa. Só os espíritos maiores estão no seu tempo, o podem entender, retratar e determinar vias de porvir. Por que é que a suprema elegância mundana é, ao mesmo tempo, um pechisbeque? Por que é que não passa de um pechisbeque? Que esforço é que a suprema inteligência ainda tem que fazer para se libertar dos grilhões do próximo imediato, se o requinte terreno, bem lá no fundo de tudo, é apenas um mundo hermeticamente cerrado, inexoravelmente asfixiante?

Tamara não o diz apenas pela sua obra, pois o diz também pela sua vida. A libertação faz-se pelo misticismo, pelo Sagrado.

Não sou dos que caem na tentação de considerar que vivemos tempos ominosos. Digo antes que a nossa tão complexa e conturbada época tão-só pode ser entendida com o primado dos pensamentos positivos.

Ao ser uma “mulher fatal” que conduzia Bugatti, mas, ao mesmo tempo, pintou, v.g., A Madre Superiora, Santo António e A Comungante (que lhe valeria um prémio em Poznan), ao ser protagonista do seu tempo e no seu tempo – libérrima até ao escabroso –, mas pedir que, após a sua morte, as suas cinzas fossem espalhadas na cratera do vulcão Popocatepetle (México), Tamara conhecia, simultaneamente, toda a riqueza do humano imanente e que, paradoxalmente, o humano, afinal, é «pó que em pó se há-de tornar». A identidade humana é, simultaneamente, histórica e a-histórica, terrena e sagrada.

De Atenas a Estocolmo, Oslo e Helsínquia, tenho visitado incontáveis exposições. Esta (até dia 15 próximo) é, seguramente, uma das mais importantes. E que Tamara só agora esteja a ser descoberta por círculos mais vastos que os estritamente conectados à Arte, isso revela não só, obviamente, a sua grandeza, mas que a verdadeira arte é intemporal, eterna. Após a 2ª Grande Guerra os críticos disseram dela o pior – mas o público continua, avassaladoramente, a impô-la… Faz-me lembrar uma quantidade de ficcionistas que disse o pior de Salazar e notou que, num concurso com as mesmas regras, enfileira ao lado de… Churchill e de Gaule, v.g.

Mais. Tamara mostra que «todas as grandes questões estão cheias de ambiguidade» (Tácito) e que os grandes o são porque viajam, se cultivam, sabem muito bem o que «andam cá a fazer» e que devemos pôr sempre o tempo do nosso lado. Ela não dominava apenas os mestres do Renascimento ou os mestres dos interiores holandeses. A viagem a Itália, ainda menina, mergulhara-a noutro mundo; depois chegou facilmente às vanguardas do início do século XX, fez uma nova leitura do Classicismo, situou-se na Art Déco, continuou…

Estou absolutamente seguro que uma “sabidona” como Tamara de Lempicka, aceitaria, cheio de pudor, um beijo meu.

Vigo (Casa das Artes), 30-VI-07

Por: J. A. Alves Ambrósio

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