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Tábua de Marés

“Rugas”

Exposição de fotografias de Carlos Pedro (www.olhares.com)

Galeria do Paço da Cultura da Guarda

De 9 de Março a 30 de Abril

Sobretudo na arte (pronto, já disse a palavra), é preciso chegar ao ponto exacto em que não basta a justeza das imagens, mas a evidência de serem lidas como simplesmente imagens. No fundo, uma preocupação de ordem higiénica. Claro que o célebre trocadilho de Godard, só possível na década da inocência, resulta melhor em francês. Mas o alcance da expressão do cineasta resiste bem à alteração do idioma.

Até agora, de Carlos Pedro “só” conhecia a sua figura afável, a sua boina sempre presente, a sua música, a sua disponibilidade perante a vida. Quando soube que também se dedicava á fotografia e que alguns dos seus trabalhos iriam ser exposto, só pensei o seguinte: eis uma obra que, por desconhecer em absoluto, de certa forma é impossível decepcionar-me. Pois o que sabia do autor coloca-a acima da dúvida, ou da surpresa. Mas estava longe de imaginar que, neste caso, só em relação à primeira parte estava certo. A surpresa foi tão intensa como espontânea, diante das imagens captadas por Carlos Pedro. As quais, voltando ao início, para lá de simples imagens, são também, imagine-se, igualmente justas…

A mostra está organizada de modo a ocupar as três divisões da galeria. Nas primeiras duas, predomina o retrato individual. O motivo vai desde o clássico – onde “De cabeça erguida”, “Encontro com o tempo” e “O regresso a casa” são os exemplos mais notáveis – até ao retrato em ambiente de trabalho (vd. a notável imagem do produtor artesanal das facas do Verdugal, “O fio da vida”), passando pelo registo iconográfico (“Domingo” e “Fé, em Santa Eufémia”). A última sala foi escolhida para a obra mais temática, privilegiando as manifestações musicais e festivas, numa perspectiva alternadamente colectiva e individual. Neste capítulo, destaque para duas sequências: a dos tocadores / pauliteiros transmontanos e a da “Festa dos Montes”, numa aldeia do concelho de Trancoso. Quer num caso quer no outro, o autor captou muito bem o movimento colectivo, o ritual que transcende os participantes, mas nunca os apaga. Dilui-os sim numa celebração pagã, onde o peso da terra não consegue iludir os esforços para lhe escapar. E onde a qualidade evidenciada por grande parte das imagens garante não só o valor artístico, como o interesse documental. Mas onde estão, afinal, as rugas, essas mesmas que deram o título à exposição? Encontramo-las um pouco por todo o lado. Nos rostos e nas mãos, é claro, nas pedras, nos portais das igrejas, nos sulcos do arado acabados de rasgar, nos alpendres sombrios, nos gravetos que alguém carrega às costas, nas uvas e no pão da peregrina, nas flautas e nos acordeões da festa, na espessura do silêncio, na pedra de amolar, no fio dobado. As rugas são os sinais inescapáveis do tempo, as gelosias por onde espreita uma suprema dignidade. Mas esta mostra memorável diz-nos também algo de novo: que as rugas são também as comissuras onde o tempo se esconde, as guaritas onde, como sentinelas, vigiamos a eternidade.

“Minha Mãe”

Realização: Cristophe Honoré

A partir do romance homónimo de Georges Bataille

Com Isabelle Huppert, Louis Garrel e Emma De Caunes

França, 2004, 110’

Ciclicamente, o cinema tende a aproximar-se do seu aliado mais óbvio, a literatura. Paradoxalmente, também o mais perigoso e exigente. Sobretudo quando se trata de obras de escritores “malditos”, como Bataille. Poderosa e corajosa, esta segunda longa-metragem de Christophe Honoré, é uma boa surpresa. Bataille, com reputação de inadaptável para o cinema, ganhou vida perante os nossos olhos. O cineasta transpôs a acção do romance para os nossos dias e para as ilhas Canárias, num desses complexos turísticos de massas que florescem em Espanha: uma arquitectura cuja simples visão, inumana, assustadora, basta para desejar mergulhar no inconsciente para se perder. Desde os primeiros planos aos abanões da câmara que sobrevoa estas paisagens de betão, estamos já no centro da história. Pierre e a mãe procuram um absoluto no qual o erotismo é apenas um instrumento. Não é só uma questão de prazer, mas de abjecção, de pureza, de sede, de medo da morte. A mãe não é a santa que Pierre acredita e desde que o pai morre misteriosamente (nunca saberemos porquê, como no livro) ela vai provar-lho. É a verdade que está aqui em causa, a verdade obscura, aquela que cega. A mãe é alcoólica, vive no deboche, entrega-se sem complexos, sem limite. E decide iniciar Pierre no deboche, confiá-lo a outras mulheres que o vão conduzir a jogos cada vez mais perigosos e para os quais não está preparado. Não interessa qualificar estas cenas, porque há palavras estereotipadas que sujam as imagens, que retiram toda a força aos actos, que marginalizam de imediato quem os comete. Sexuais, sim, mas sobretudo transgressoras. E é esse o grande mérito de Honoré: ter conseguido salvaguardar o essencial de Bataille – a transgressão – adaptada para a nossa época (nomeadamente no que diz respeito à ocultação da dimensão cristã de Bataille – mas a morte de Deus não exclui a procura do absoluto). Com imagens que nos transportam para zonas ‘infilmadas’ até hoje num filme. Portanto, a questão do filme pertence muito menos a Bataille e muito mais a Honoré. Não é por acaso que o filme é conseguido sobretudo pelas liberdades que se permitiu face ao texto original. Sobretudo a localização da acção nas ilhas Canárias, destino turístico que vende uma utopia de sexo fácil e céu demasiado azul. Levar o prazer batailliano, inseparável da ideia de transgressão, para um local que é como uma caricatura de uma sociedade que já permitiu tudo, já normalizou tudo, era um grande risco. E o filme sai vitorioso deste risco. O outro risco estava relacionado com a forma de encontrar o erotismo. Poderíamos pensar que o resultado fosse fraco, recusando Honoré a composição de grandes planos explícitos. Percebemos agora que, permanecendo à distância, em plano geral, não suprimiu a carga sexual, mas expandiu-a para todo o plano. Para tanto, serviu-se de um casting tão prestigiado como heterodoxo, em que brilha na primeira linha a grande Isabelle Huppert, escoltada por um jovem actor sobredotado, Louis Garrel, uma actriz que finalmente se afirmou, Emma de Caunes, e um ícone do underground, Joana Preiss, manequim e modelo da fotógrafa Nan Goldin. É o próprio realizador quem o confirma, em entrevista concedida na altura da estreia: “Queria fazer um filme que só devesse à luz, aos actores, à música. Mas esta abordagem era ingénua e infantil. Percebi que o que podia ser interessante no meu cinema é eu ter um pé no cinema e outro na literatura.” A certa altura dois personagens fazem sexo e por trás lê-se num cartaz “Alle Infos hier” (Todas as informações aqui), mas bem que poderia ser “Alle Ninfos hier”. De facto, o espaço é mostrado de forma quase degradante – uma zona turística que fala várias línguas, onde ninguém está em casa. Onde, no limite, se parte para a auto-destruição. Mas é aí precisamente que Bataille nos quereria levar. Ao lugar onde, nas suas palavras: “O riso é mais divino, é mesmo mais indecifrável do que as lágrimas.”

Por: António Godinho Gil

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