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Somos um país extraordinário

De fora, dando descanso à cabeça e ao computador, lendo despreocupadamente os jornais à beira-mar, dou-me conta de como, em vários aspectos, somos mesmo um país extraordinário, daqueles que, não existindo, teria de ser inventado.

Os sinais desta singularidade abundam mesmo nas páginas da imprensa de Verão – onde, supostamente, nada mais há para contar do que o vazio de notícias da estação. O mais fantástico exemplo é, sem dúvida, o da nova ponte sobre o Tejo, chamada ponte da Lezíria. Há milhares de anos que a humanidade sabe que uma ponte serve para passar por cima mas também para passar por baixo. Nós, porém, somos excepção: só depois da ponte estar feita e inaugurada é que as forças vivas locais e os utilizadores de barcos no rio descobriram que a ponte não dá passagem a barcos, porque é baixa de mais. Estiveram ali anos a vê-la ser construída e nunca pensaram no assunto antes de a verem pronta. Agora, todos reclamam e exigem uma ‘solução’(?).

No mesmo sector das obras públicas ‘urgentes’, temos também o caso do novo terminal do aeroporto da Portela, baptizado de Terminal 2, e onde se gastaram milhões em obras ‘inadiáveis’ de um aeroporto que, oficialmente, só tem mais uns anos de vida. Pois o terminal lá ficou pronto para facilitar a vida a todos e servir melhor as ligações internas. Mas, ao fim de quinze dias, a insuportável e tradicional espera pelas malas que caracteriza o aeroporto da Portela, ficou pior do que nunca e, no Porto, chega a atingir horas de espera. Explicação simples e eloquente do responsável da empresa de “handling” dos aeroportos: “a inauguração do Terminal 2 não correu bem”. Eis como a solução se transforma em problema.

Mais obras, públicas e privadas – ou tudo à mistura, como também acontece. O primeiro-ministro foi ao Algarve anunciar mais sete megaprojectos imobiliário-turísticos, os quais, segundo acusação do eng.º Macário Correia, determinaram o adiamento da entrada em vigor do PROTAL, o plano de ordenamento do território aprovado pelo próprio Governo: é que, à luz das normas do plano, e se este já estivesse em vigor, os projectos não poderiam ser aprovados, nem como PIN. Assim, movido pelas melhores intenções, o Governo dispõe-se a pôr alguma ordem no ‘desenvolvimento’ do Algarve. Mas, movido por ainda melhores intenções, trata primeiro de aprovar aquilo que possa contrariar as suas próprias leis. Na ria de Alvor, uma das raras paisagens naturais ainda preservadas de Portugal, o primeiro-ministro deleitou-se a ouvir sete empresários chegarem-se sucessivamente ao microfone para elogiar a grande compreensão demonstrada pelo Governo em prol do ‘desenvolvimento’. E, imaginando já uma paisagem PIN, semeada de hotéis, golfes, vivendas e milhares de camas, onde antes só havia verde, Redes Natura, “habitats” protegidos por directivas europeias e ‘obstáculos’ quejandos, José Sócrates contemplou este Portugal do futuro e, embevecido pela sua visão, exclamou: “Haverá sempre quem faça críticas, mas é disto que o país precisa!”.

Dias depois, como relatava o ‘Sol’, o primeiro-ministro que jurou apostar num desenvolvimento baseado na qualificação e na excelência, reuniu-se em segredo com os grandes clientes das obras públicas (justamente alarmados com as críticas crescentes à Ota e ao TGV), para em conjunto estudarem novas parcerias para aquele que é será sempre o único verdadeiro “cluster” da economia portuguesa: as obras e encomendas públicas. O Governo encomenda, os bancos financiam, os escritórios de advogados do sistema fazem os contratos, as construtoras constroem e os contribuintes pagam. O país está cheio de porsches e ferraris que saíram directamente do nosso bolso para ajudar a ‘desenvolver’ Portugal.

Vejamos agora o extraordinário folhetim vivido no ‘maior banco privado português’, onde há quase trinta anos uma plêiade dos melhores bancários do país se esforça para que lhes seja reconhecido o estatuto de ‘cavalheiros da finança’ e ‘dinheiro velho’. Depois de um ano gasto a arrastar uma OPA, arrogante e precipitada, sobre um concorrente mais pequeno, o grande viu o mercado saudar o fiasco da OPA com a valorização das acções, mostrando aos administradores de que lado estava a razão e o bom-senso. Depois de jurarem publicamente que a culpa do erro não morreria solteira, eis que se lançam uns contra os outros, numa pura guerra pelo poder interno que, no espaço de um mês, já fez perder 15% do seu capital aos accionistas e onde o nível dos golpes e contragolpes com que se digladiam e as assembleias gerais em que se enfrentam deitam por terra os milhões gastos em publicidade para construir uma imagem de respeitabilidade ao longo dos anos. Por ironia do destino e da legislação que o permite, o ‘pequeno’ banco opado e vencedor da OPA surge agora em posição de poder contribuir decisivamente para determinar os destinos do ‘grande’ e nos ‘mentideros’ comenta-se que, no futuro não muito distante, é capaz de ser o pequeno a engolir o grande. E alguém, porventura, se lembra de perguntar aos clientes e aos pequenos accionistas desta sagrada instituição bancária o que pensam eles de tudo isto e da imagem que o banco dá de si mesmo?

E termino com as aventuras estivais do ‘maior partido da oposição’. Subitamente engajado numa disputa interna pelo poder (cuja oportunidade ninguém entende, a não ser pelas razões à vista e essas hão-de continuar por muitos anos), o PSD descobriu que os seus destinos podem ser determinados pelo voto dos militantes da Madeira e não pelos do continente, que são, todavia, imensamente mais. Parece que uns pagam quotas e outros não, que uns estão registados e devidamente controlados e os outros não, que uns são militantes e os outros simples diletantes – ou, mais simplesmente, porque só há militantes quando há poder. E como para as ‘directas’ o que conta é o voto dos militantes e já não o dos seus representantes, quem tiver a Madeira tem o partido. E, para ter a Madeira, é preciso, claro, ter o consentimento do dr. Jardim. E por isso vimos o ‘candidato a primeiro-ministro’, dr. Marques Mendes, sujeitar-se à humilhação mais chã, naquela manifestação alcoólico-partidária única nas democracias, que dá pelo nome de Chão da Lagoa. Sinceramente, tive pena dele: há maneiras mais edificantes de um candidato a primeiro-ministro se suicidar politicamente.

Por: Miguel Sousa Tavares

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