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Sol e sombra, touros e toiradas

Agora Digo Eu

Mês de agosto. Mês de todas as festas. Festas em honra do santo padroeiro, com missa, procissão, banda e bailarico, boa comida, muita bebida e, como é natural e habitual, toiros na arena, no largo ou na praça.

Os toiros e as toiradas são, por tradição, um “espetáculo” de emoções que motiva acesos debates, requerendo da nossa parte uma efetiva reflexão.

Não sendo um amante da afición, subscrevo na íntegra a declaração da UNESCO, datada de 1980: «A tauromaquia é a terrível e venal arte de torturar e matar animais em público. Desnaturaliza a relação entre o homem e o animal, afronta a moral, a educação, a ciência e a cultura».

O homem, como ser inteligente e superior que é, criou, em 15 de outubro de 1978, a célebre Declaração dos Direitos do Animal, permitindo-me citar o seu artigo 3º: «Nenhum animal será submetido a maus tratos nem atos cruéis. Se for necessário matar um animal, ele deve ser morto instantaneamente, sem dor e de modo a não provocar-lhe angústia». O artigo 10º refere «nenhum animal deve ser explorado para divertimento do homem» para, no artigo seguinte, se acrescentar que «todo o ato que implique a morte de um animal, sem necessidade, é um biocídio, isto é um crime contra a vida».

Esta questão das toiradas em Portugal é, e continuará a ser, extremamente polémica, sendo importante dar uma vista de olhos pelos factos que a história relata.

No dia 19 de setembro de 1836, D. Maria II assinava um real decreto que dizia o seguinte: «Considerando que as corridas de touros são um divertimento bárbaro e impróprio de nações civilizadas, e bem assim que semelhantes espetáculos servem unicamente para habituar os homens ao crime e ferocidade, e desejando eu remover todas as causas que podem impedir ou retardar o aperfeiçoamento moral da Nação Portuguesa: hei por bem decretar que ora em diante fiquem proibidas em todo o Reino as corridas de touros».

E assim foi quase durante um ano. No entanto, os aficionados conseguiram a revogação deste real decreto, a Lei de 30 de junho de 1837. Aí se referia que poderia haver touradas, mas sem touros de morte. Como facilmente se percebe, a lei foi sistematicamente violada.

Vem a República e face a inúmeras queixas, que entravam no Ministério do Interior dando conta da realização de touradas com touros de morte, o Governo elabora o Decreto nº 5:650, de 10 de maio de 1919, que estabelecia penas para os prevaricadores. A 6 de abril de 1921, a portaria 2:700 obriga as autoridades a fazer cumprir as disposições do Decreto de 1919, pois, em vez de se acatar a legislação, os touros continuaram a ser mortos na arena em vários pontos do país, obrigando o Governo, em 11 de abril de 1928, a assinar o decreto nº 15:355 determinando multas e penas. É com base neste decreto que ainda hoje estão proibidos os toiros de morte em Portugal (exceto em Barrancos, Lei de exceção de 2002), permitindo-me citar o seu artº 1º: «Em todo o território da República Portuguesa ficam absolutamente proibidas as touradas com touros de morte, quer quando realizadas nas praças a esse fim especialmente destinadas, quer em qualquer outro recinto para esse fim improvisado».

Se a tradição comporta em si mesma costumes, comportamentos, músicas, cantos, memórias, crenças e lendas, por vezes é difícil percebe-la quando esta traz à mistura tortura e morte, nesse divertimento que todos verificamos ser bárbaro e desumano, num delírio de nervos, de impulsos, de emoções (quase) acéfalo onde centenas ou milhares de almas (quase) se masturbam atingindo, (quase) por magia, um (quase) orgasmo ao ver um touro a sofrer, a agonizar e a morrer.

A tradição tem destas coisas. A tradição vence porque é mais forte, tem raízes, tem convicção, tem fé e, porque tradição é tradição. Nem mais.

Para ilustrar isto, basta citar o protagonista desse interessante êxito cinematográfico de 1971, “Um violino no telhado”. «Sem as nossas tradições as nossas vidas seriam tão instáveis quanto um violinista no telhado». E, se calhar, Chaim Topol tinha razão. Efetivamente, o que faria um violinista num telhado se não fosse mesmo por tradição?

A Assembleia da República aprovou recentemente (e bem) legislação prevendo penas para quem pratica maus tratos e abandona animais de companhia. Embora seja um avanço, a pergunta fica no ar: Então e todos os outros?

Por: Albino Bárbara

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