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Sobre as presidenciais

Razão e Região

Não creio que as ilações que vêm sendo tiradas do resultado das votações em Cavaco Silva e em Manuel Alegre tenham seguro fundamento. Em primeiro lugar, tratava-se de eleições presidenciais, onde quem estava em causa era a pessoa do candidato, o perfil, as suas capacidades políticas, a sua história pessoal e o bloco político-ideológico em que se inseria. Tratava-se também de um cargo unipessoal, com a função de controlo geral do sistema político e a dimensão simbólica de representar pessoal e institucionalmente o país. É certo que ambos os candidatos de distanciaram dos partidos. Mais Manuel Alegre do que Cavaco Silva. Este último, de resto, tinha o apoio explícito dos dois partidos da direita e o apoio organizativo do PSD. Mas também é verdade que, no discurso, procurou distanciar-se, reivindicando uma condição suprapartidária, afinal, condição exigível à própria função presidencial. Neste aspecto, a dimensão partidária das eleições presidenciais foi posta no lugar que lhe pertencia.

Já o mesmo não se pode dizer de Manuel Alegre. Por três razões. A sua candidatura foi enjeitada explicitamente pelo PS a favor da candidatura de Mário Soares, quando este se mostrou disponível. Alegre candidatou-se não só contra Soares e Cavaco, pela conquista da Presidência, mas também contra os partidos, incluído o seu. Por isso se assumiu como líder de um movimento de cidadania. As estruturas de apoio da sua candidatura, sendo constituídas no essencial por militantes do PS, não foram, contudo, disponibilizadas por nenhum partido. Neste sentido, a candidatura de Alegre representou mais genuinamente uma candidatura unipessoal do que qualquer outra. Sendo plenamente funcional ao cargo que disputava, ela afirmou-se, todavia, também como crítica política e conceptual dos partidos políticos, quando, afinal, não eram eles que estavam a reivindicar o protagonismo político, não se candidatavam a qualquer função e nem sequer iriam reivindicar os resultados como prova do seu empenho. Em nome da natureza unipessoal da eleição e do respeito pelos próprios candidatos. Neste sentido, Alegre seguiu a já clássica orientação estratégica dos movimentos moralistas que sempre esgrimem com radicalidade a genuinidade política dos valores contra o pragmatismo político, como se o desafio democrático mais genuíno e mais difícil não consistisse precisamente em conseguir fundir estas duas dimensões no exercício de uma política verdadeiramente democrática. É claro que no povo de esquerda existe uma larga faixa eleitoral que se identifica com essa esquerda dos valores, particularmente quando a esquerda governa e deve, por isso, confrontar-se com a dura realidade e com a teimosia dos factos. Se é certo que foi essa esquerda dos valores, no essencial pertencente ao universo ético-político do PS, que alimentou o «score» eleitoral de Alegre, também é certo que este congregou outros eleitores da área PS que pura e simplesmente já não se reviam política e funcionalmente em Soares, tendo assumido o seu voto em Alegre mais por exclusão de partes do que por adesão a um programa. Como é natural, eles não poderiam dar o seu voto a Cavaco Silva, a Jerónimo de Sousa ou a Francisco Louçã. Mas é claro que também houve uma pequena parte de votos que proveio de outras áreas. Áreas, todavia, que eram e são seguramente estranhas ao próprio perfil político e humano de Alegre. Trata-se, como é fácil de ver, daqueles inimigos radicais dos partidos que, ipso facto, são também inimigos da democracia. É por isso que têm todo o sentido as palavras de Eduardo Lourenço, quando se distancia, de forma dura, das posições de Alegre: «Não sei se Manuel Alegre esteve na Fonte Luminosa quando o país, pela voz de Mário Soares e Zenha, escolheu a Democracia sob que vivemos e onde o partido a que pertence se assumiu como a vanguarda dessa opção. O seu amor pela Liberdade não está em causa e o seu direito de corrigir a Democracia também não. Mas não se estranhe que um seu admirador lhe diga que a sua cruzada antipartido, além de intrinsecamente demagógica, populista no pior sentido, é ideologicamente incoerente, ou então francamente inaceitável. A Democracia não é o paraíso na Terra. É apenas a difícil aprendizagem de solucionar com o mínimo de racionalidade e paz os antagonismos de toda a ordem que a sociedade dos homens fabrica. Mas os messianismos unanimistas são, sem excepção alguma, o inferno da História ou a História como inferno» (Visão, 26.01.06, p.61).

A democracia representativa continua a manter, como dizia Norberto Bobbio, muitas promessas não cumpridas. É verdade. E uma delas é, sem dúvida, o défice de participação cívica e política dos cidadãos nos destinos da vida colectiva. São, por isso, desejáveis todos os movimentos de cidadania que a queiram reforçar. Mas o problema começará quando esses movimentos se quiserem substituir às estruturas nucleares da própria democracia representativa. Que é, afinal, muito mais orgânica do que os arautos do «movimentismo» pensam.

Por: João de Almeida Santos

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