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Sísifo morreu de velho

Jogo de Sombras

1. Obviamente, ninguém poderia esperar que o problema da pediatria se resolvesse só porque quatro médicas recém-especializadas eram forçadas a trabalhar no Hospital da Guarda, por concursos de ingresso que não deixavam alternativa às vagas numa unidade carenciada. O que se passou com a leva de há menos de um ano tinha-se passado com a de dois anos antes e sistematicamente com as anteriores, desde que há memória de que a falta de pediatras fosse um problema. Elas vir, vêm. Algumas com casa montada, carro e motorista, como as duas últimas contratadas pelo anterior conselho de administração. Outras com licença para gastar à discrição, como aquelas que, no ano passado, foram incumbidas de pôr em funcionamento a urgência pediátrica. Mas depois saem. No tempo da anterior chefe do serviço dizia-se que era por mau feitio da senhora. Agora diz-se que é por inaptidão do sucessor, que não devia ter sido nomeado em detrimento de uma das novas médicas – ao menos para deixar entrar uma lufada de ar fresco. Mas quando não é por factores internos é porque têm a vida organizada fora daqui. Uma das pediatras veio para a Guarda (confessou-o depois) com a promessa da própria Administração Regional de Saúde de ser «só por uns tempos», até à criação do lugar que lhe estava destinado em Coimbra. Duas procuraram vaga perto de casa e ninguém as demoveu. E outra está mas não está: apesar da carência, foi autorizada a frequentar uma especialização em Lisboa. Restam o chefe, um pediatra aposentado que procura passar o tempo e uma médica eventual que cumpre um dia e meio de serviço por semana.

2. Mas se ninguém esperaria ver o problema resolvido só pela ilusão de, por uma vez, o hospital ter contado com sete pediatras ao serviço, também não era necessário nem desejável ter-se chegado ao ponto de fechar a maternidade para se perceber que aquele que foi reclamado como o mais estrondoso êxito do actual conselho de administração não é senão o seu mais retumbante fracasso. Houve outros – o da radiologia; o das urgências – mas nenhum com tanto relevo como este. A pediatria é a jóia da Coroa, é o boi Ápis. Falhando, arrasa a importância do hospital, arruína a credibilidade de quem o dirige e destrói a imagem da própria cidade. Não é porque as crianças tenham que ser atendidas na Covilhã. Há muito que se devia ter apostado na complementaridade entre os dois hospitais, deixando cada um especializar-se nas valências para que tem meios e vocação, prestando serviços à escala regional em vez de sobreporem recursos nuns míseros quarenta quilómetros de auto-estrada. A haver escassez de especialistas, assegurar-se-ia um razoável serviço de pediatria na Covilhã e permaneceriam na Guarda apenas os suficientes para dar apoio à maternidade e à neonatologia. Estas são as áreas de bandeira do Hospital Sousa Martins. A média anual de partos é maior na Guarda do que nos hospitais da Covilhã e de Castelo Branco juntos. Mas agora – a não ser aos fins-de-semana e feriados, porque um médico oblativamente se propõe ser pago a dobrar – já não há o direito a nascer na própria terra.

3. Irmanadas na culpa, as forças vivas entregam-se a um traiçoeiro silêncio. Nem governador civil, nem deputados, nem autarcas. Nem PSD, nem PS. Ninguém pronuncia uma palavra sobre esta vergonha. O director clínico do Hospital tenta explicar-se mas remete a solução para o se Deus quiser. O presidente da Administração Regional de Saúde – que foi quem mais fez alarido com a vinda dos ex-novos médicos – sugere que este é um preciosismo dos tempos modernos: todos os que temos mais de dez anos de idade nascemos sem um pediatra à cabeceira e cá andamos. E o secretário de Estado da Saúde acha que o problema da pediatria na Guarda se resolverá como a lenda da pedra de Sísifo: talvez se consiga segurá-la no cume da montanha. Mas no mito da Grécia Antiga o rochedo rolava continuamente. Sísifo morreu de velhice – sem compreender como era inglório o desígnio.

4. Permita-se-me duas questões, mesmo que recorrentes. Primeira: que é feito do movimento cívico que, antes de o PSD chegar ao poder, se desunhava em manifestações contra a falta de pediatras? Segunda: para que queremos um hospital novo?

Por: Rui Isidro

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