Arquivo

Sinais dos tempos

Razão e Região

A posse de Barack H. Obama como 44.º Presidente dos Estados Unidos representou simbolicamente uma viragem na política mundial. Não por ser o primeiro Presidente negro deste País. Mas precisamente por representar a superação definitiva da barreira racial, inaugurando uma nova ordem pós-racial. Como ele próprio lembrou no seu discurso, quando o filho de um homem que, há menos de 60 anos, não podia ser servido num restaurante local hoje pode estar a tomar posse como Presidente dos Estados Unidos, então algo está a mudar radicalmente neste País. Nestas eleições esteve também em cima da mesa a possibilidade de vir a ser eleita, pela primeira vez, uma mulher, quer como Presidente quer como Vice-Presidente: Hillary Clinton e Sarah Palin. E sabemos quão difícil foi o processo de reconhecimento constitucional americano do próprio direito de voto dos negros e das mulheres. Só com a «XV Emenda» constitucional, de 1870, quase cem anos depois de aprovada a primeira constituição dos Estados Unidos (em 1787), foi proibida (nos Estados Unidos e em cada um dos Estados federados) a recusa do direito de voto «por razões de raça ou de precedente condição servil», e, com a «XIX Emenda» constitucional, de 1920, foi proibida a recusa do direito de voto por «razões de sexo». Isto, apesar de sabermos que os imperativos constitucionais não foram suficientes, durante décadas, para impedir discriminações generalizadas por razões de raça ou de sexo. Sobretudo nos Estados do Sul. Que os Estados Unidos tenham, num período de grave crise mundial, decidido, com uma mobilização política e civil como há muito não se via, e exprimindo-se através dos mais avançados meios de mobilização popular, eleger Barack H. Obama, mostra bem que o futuro que hoje começa está já muito bem sedimentado na mente e nos costumes da maioria dos americanos. Mas um futuro cheio de referências a uma história construída no signo da coragem, da ambição e da esperança.

Dois milhões de pessoas foram à tomada de posse. Tratou-se de uma cerimónia de dimensão quase bíblica. E, se a vida é feita de sinais, o sinal da posse deste homem simples, de modestas origens e de múltiplas pertenças, foi muito impressivo, porque há muito que não se via uma tal onda de entusiasmo a varrer o mundo da política, mesmo quando são muito sombrios os caminhos por onde ela tem de passar. Ou talvez por isso mesmo. A política, hoje, também é cada vez mais isso, cheia de iconografia mediática, superpersonalizada, laicamente ritualizada. E aquilo que vimos foi precisamente um enorme, gigantesco ritual laico de «entronização» do homem, ao mesmo tempo, mais poderoso do mundo, mais simples e mais representativo da nova ordem pós-racial que os Estados Unidos acabam de inaugurar. Parecendo até que só hoje se está a cumprir verdadeiramente aquele longo processo histórico de afirmação da «igualdade de condições» de que falava o excelente Tocqueville de «Da Democracia na América». Que se está a cumprir com uma gigantesca liturgia democrática que reúne, finalmente, num mesmo espaço, milhões de participantes… reais e virtuais. O discurso de Obama foi, de certo modo, um apelo à responsabilidade, um chamamento aos cidadãos livres e iguais deste País, num tom equivalente àquele que levou Kennedy, nos anos sessenta, a dizer aos americanos que não perguntassem o que poderia a América fazer por eles, mas sim o que é que eles poderiam fazer por ela. Um discurso não programático, mas de mobilização humana, de apelo aos valores do sacrifício, da vontade, da responsabilidade e da esperança. A verdadeira novidade era ele próprio, Obama, o seu percurso, a força da sua vontade, a sua crença no triunfo. A humildade, mas também a ambição. O realismo, mas também a força de vontade. O sacrifício, mas também a esperança. De algum modo, Obama deu a entender que a política está cheia, demasiado cheia de programas, de medidas, de números e de frio pragmatismo. Compreendeu que sem a alma cheia não se chega a lado algum. E que foi o seu próprio percurso que ajudou a relançar a esperança, que desfalecia, mobilizando os americanos como há muito não se via. Foi para esses que ele falou. Foi esses que convocou.

Não sei se isto corresponde a uma sua opção política de fundo. O que sei é que a política não pode ficar desumanizada, numérica, deixando de apelar ao que de mais profundo e nobre move os seres humanos. Sobretudo quando se trata de cidadãos do mais poderoso País do mundo.

Por: João de Almeida Santos

Sobre o autor

Leave a Reply