O Luís Baptista-Martins avisou-me hoje da adesão do Interior ao novo acordo ortográfico e pediu-me para respeitar as novas regras. Não discuto a oportunidade da medida, até porque o acordo é para cumprir e mais tarde ou mais cedo iria ter de enfrentar a realidade. Há poucos meses, depois de atualizar (actualizar) o Office nos meus computadores, descobri que o corretor (corrector) ortográfico sublinhava a vermelho palavras que eu julgava bem escritas. Era já o Acordo Ortográfico, a transformar em erros palavras tão duramente aprendidas, a tornar inúteis as reguadas pelas consoantes mudas ignominiosamente esquecidas.
Adiei e adiei. Eu, que sou um feroz adepto (não, não é adeto) da simplicidade e de tudo o que é novo, eu, que gostava de dizer “é preciso mudar, nem que seja para pior”, não conseguia decidir-me a adotar (adoptar) as novas regras. Havia algo de inestético no acordo ortográfico, algo que não parecia certo. E não era por passarmos a escrever de maneira diferente de Pessoa ou Camões, que já escrevíamos antes com regras diferentes das deles. Era sobretudo o incómodo de recomeçar a aprendizagem, de recomeçar pura e simplesmente, de rasgar páginas antes, julgámos, bem escritas.
É uma coisa muito portuguesa, e muito católica, esta mania de reescrever o passado. Oscar Wilde, em “De Profundis”, assinalou esse caráter (carácter) do catolicismo que consiste em eliminar o passado através de uma doutrina do perdão. O defeito desse hábito é evidentemente a desresponsabilização: “se me arrepender antes de morrer vou mesmo assim para o Céu” – o que permite uma vida pecaminosa e corruta (corrupta) antes do glorioso arrependimento final. É talvez por isso que mudamos tantas vezes as regras, transformando em lei anteriores erros ortográficos – e vice-versa. E é por isso que prezamos as anistias (amnistias – mas posso ter falhado esta), que não passam de perdões legislados.
O mesmo se passa com tudo o resto. Os nossos códigos são reescritos com frequência, talvez demasiada. Descobrem-se erros em disposições que até ali tinham força de lei e impunham pesadas sanções aos prevaricadores. Cada vez que há um novo governo mudam de nome os ministérios – e deitam-se toneladas de papel timbrado para o lixo. Todos os anos compro um novo código de processo civil, ou processo penal, ou outro qualquer. O código do IRS de hoje nada tem a ver com o de 2000. O código da estrada também não. Há (de certeza) coisas que antes eram proibidas e agora são obrigatórias (obrigaptórias?). E vice-versa (ou viceversa?).
E pronto, Era o que tinha hoje a dizer-vos, obedecendo tanto quanto pude aos novos ditames do diretor (director) do jornal: Luís Batista (Baptista) – Martins.
Por: António Ferreira