Num contexto económico e social em que a Guarda devia ampliar potenciais motivo de atração, tão transversais quanto possível, continuamos a registar uma estranha apatia, ou incapacidade, perante realidades que se podiam transformar em mais-valias citadinas.
Se os principais monumentos são a face mais visível de um quadro de promoção da mais alta cidade portuguesa, não se podem esquecer o centro histórico, as instituições, a tradição, a hospitalidade e múltiplas referências a personalidades com conhecida ligação à Guarda, como sejam homens de cultura e de letras.
Ocorre-nos, e por ter passado a 26 de Fevereiro mais um aniversário sobre a sua morte, o poeta e republicano Augusto Gil. A casa onde residiu – a escassos metros da Sé Catedral – poderia constituir um ponto de referência (não fosse o estado de desleixo e degradação em que se encontra) num possível, e desejado, roteiro em torno de imóveis ou locais associados à estada ou passagem de poetas e escritores; outrossim refletidos nas suas obras literárias…Esta ideia não é de hoje. Tem tido, há anos, outros defensores.
Numa cidade associada, em especial pela conhecida Balada da Neve, a Augusto Gil, a memória do poeta merecia uma maior atenção; ele que não foi apenas artífice da palavra mas igualmente uma figura na República, cujo ideário defendeu em vários textos e intervenções.
Nascido na freguesia de Lordelo (Porto) a 31 de Julho de 1870, Augusto Gil passou a maior parte da sua vida na Guarda e aqui fez os primeiros estudos; frequentou, depois, o Colégio de S. Fiel, após o que regressou a esta cidade, onde se encontrava em 1887. Tempo depois, ingressou como voluntário na vida militar que deixou com o início dos estudos na Escola Politécnica; estes seriam interrompidos, contudo, por motivo de doença.
Em finais de 1889 foi autorizado a frequentar a Escola do Exército onde o aproveitamento lectivo não foi exemplar; passados dois anos, em Maio de 1891, ingressou no Regimento de Infantaria 4 e aí prestou serviço até ao mês de Novembro. De novo na Guarda, Augusto Gil fez nesta cidade, em 1892 e 1893, os exames do Liceu, rumando posteriormente para Coimbra, em cuja Universidade cursou Direito; na cidade do Mondego teve como companheiros Alexandre Braga, Teixeira de Pascoais, Egas Moniz e Fausto Guedes Teixeira, entre outros.
Concluída a formatura, em 1898, Augusto Gil regressou à Guarda; neste período a vida não lhe correu de feição e foi confrontado com diversos problemas, de ordem profissional e de ordem económica; pretendeu exercer advocacia mas não conseguiu “clientela que lhe desse ao menos para sustentar o vício do tabaco”; curiosamente, o poeta já tinha vaticinado estas dificuldades “na aldeia sertaneja, onde hei-de ser/o melhor poeta e o pior legista”. Desejou ser professor provisório do Liceu mas o conselho escolar dessa época não o considerou competente para reger a cadeira de português. Ao longo dos anos sucederam-se diversas contrariedades e episódios que deixaram traços indeléveis no percurso literário de Augusto Gil.
Decidiu ir para Lisboa e foi trabalhar com Alexandre Braga; em 1909 regressou à Guarda, enredado em dificuldades financeiras. Com a implantação da República, impulsionou o aparecimento do Centro Republicano da Guarda e fundou o semanário “A Actualidade”, que dirigiu entre 1910 e 1912. Embora este jornal tenha surgido com meio de promoção do ideário republicano, assumiu um pendor acentuadamente literário, contando com a colaboração do Pd. Álvares de Almeida, Ladislau Patrício, Amândio Paul e Afonso Gouveia, para além de outras personalidades.
No mês de Novembro de 1911 – quando João Chagas fez parte, pela primeira vez, de um governo da República – Augusto Gil foi nomeado Comissário da Polícia de Emigração Clandestina, pelo que foi viver para Lisboa. Após ter exercido, durante escassos meses, o cargo de Governador Civil de Aveiro, voltou para a capital onde teve, em 1918, uma passagem pelo Ministério da Instrução Pública; no ano seguinte foi nomeado Diretor Geral das Belas Artes.
Em Lisboa foi uma figura altamente conceituada nos meios intelectuais e sociais; assim não é de estranhara a homenagem de que foi alvo no Teatro Nacional, em 19 de Junho de 1927. A comissão promotora dessa iniciativa integrou nomes como Júlio Dantas, José Viana da Mota, Henrique Lopes de Mendonça, Columbano Bordalo Pinheiro, Eduardo Schwalbach e Gustavo Matos Sequeira.
Nomeado Secretário-Geral do Ministério da Instrução Pública não chegou a tomar posse desse cargo pois morreu a 26 de Fevereiro de 1929, em Lisboa. Os restos mortais de Augusto Gil repousam num jazigo localizado logo à entrada do cemitério municipal da Guarda, ostentando dois versos de “Alba Plena”: “E a pendida fronte, ainda mais pendeu…/E a sonhar com Deus, com Deus adormeceu…”
“Musa Cérula”, “Versos”, “Luar de Janeiro”, “O Canto da Cigarra”, “Gente de Palmo e Meio”, “Sombra de Fumo”, “Alba Plena”, “Craveiro da Janela” e “Avena Rústica” foram as principais produções literárias deste poeta, cujo trabalho evoluiu quase à margem de escolas ou correntes literárias. “Não é um romântico, nem parnasiano, nem simbolista: é ele – o Augusto Gil – nome que é um gracioso ritmo”, observou Bulhão Pato. Muitos dos versos de Augusto Gil passaram para o cancioneiro popular, como sublinharam alguns estudiosos da sua obra, suportada num verso melodioso e num ritmo suave.
De facto, se Augusto Gil cultivou a poesia, as letras, cultivou também o seu amor pela Guarda onde escreveu uma grande parte dos seus melhores poemas. Recordá-lo é um dever de memória. Salvaguardar e valorizar um local da sua passagem pela cidade é uma fórmula de cumprir esse dever e, em simultâneo, enriquecer culturalmente a cidade.
Por: Hélder Sequeira