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Ser livre como o chão

Opinião – Ovo de Combo

Nunca soube descrever a magia de uma viagem de comboio. Nunca soube escrever sobre aquele sentimento que fica quando nada está bem, mas também nada está mal. Nunca soube como era ser-se água, mas ainda perceber-se terra, fogo e ar. Nunca soube o que fica por detrás das memórias de infância. Nunca soube… até me movimentar na voz-mistério-poesia de Patti Smith.

Mulher, menina e pássaro, Patricia Lee Smith queria ser livre antes de ser qualquer outra coisa. “M Train” – o seu último livro – fala sobre os seus trilhos de comboio, o estado que vai entre a vigília e o sonho, as obsessões pelo Café ‘Ino, o isolamento na mesa do canto, a pulga de William Blake, o urso de Tolstoi, os silêncios e os gritos de uma natureza sempre por explodir, os agentes imobiliários que não compreendem a linguagem das casas, a bengala de Virginia Woolf, a cama sofrida de Frida, um milagre de rosas e o amor de Genet.

Numa simplicidade desprevenida surgem questões que não exigem resposta: «As coisas que perdemos choram por nós?»; «Será que o meu casaco cheio de buracos se vai lembrar dos momentos maravilhosos que passámos juntos?»; «Quantos poemas sangram das suas mangas esfarrapadas?»; «O que significavam a pedra e o livro?»; «“- Não há nada mais solitário do que o chão da terra” – disse ele. Porquê solitário? – Porque é inacreditavelmente livre”».

Com a ousadia do café, relógios sem tempo, e graças que nunca vêm sós, Patti Smith deixa-nos espreitar pedaços do seu mundo. A ordem é a desordem, as suas chávenas não têm pires, e a poesia pode nascer numa noite sem quarto (crescente, minguante, cheio ou elefante). E nesse caminho que a impele a seguir em frente existem livros, séries e memórias que a empurram a olhar para dentro – dentro dos sonhos e de mil e uma pistas sem solução.

O livro, tal como a sabedoria de todas as coisas inanimadas, não conhece relógios; e a vida, tal como o riso de um bebé, não conhece lógica ou matemática. Os devaneios vão-se acumulando nos rabiscos de um guardanapo, e os pesadelos escondem-se num poço. Na morada que vai entre a casa da Patti e a nossa ficam provavelmente balões prateados meio vazios e pós de almas velhas. Mesmo com os seus, a artista procurará sempre a liberdade antes de tudo o resto. E não nos enganemos, pois bem sabemos que nas nossas horas mais loucas, todos queremos miar como um chão e vigiar o Álamo como uma estrela vespertina: «Foste tu que me trouxeste aqui?, perguntei eu a mim mesma. Perto do mar, embora sem saber nadar. Perto do comboio, porque não sei conduzir».

Melanie Alves

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