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Ser cruzado hoje

Tresler

1.Achamos hoje estranha a fúria dos atentados islâmicos em nome de um Deus, com os terroristas a bramir contra os cruzados e pela recuperação do Al-Andaluz. Há mil anos, no tempo das cruzadas, a espiritualidade e a vivência religiosa eram o respirar da quase totalidade da população, lado a lado com a ligação a um senhor a quem se pedia segurança e a quem se deviam tributos. Pelo meio, a miséria quase geral. As comunicações na horizontal eram fracas e lentas, na vertical funcionava melhor: Deus estava lá em cima e ele explicava tudo, mesmo o inexplicável. Quando não respondia, era a “vontade de Deus”. A ideia de livre convivência entre religiões era impensável. E se não era possível converter, havia que exterminar os “infiéis”.

Não admira assim que a ocupação dos lugares santos fosse o toque a rebate para acudir a Jerusalém. Ultrapassar mais uma colina depois de meses de viagem e em seguida avistar Jerusalém, este era o anseio de milhares de cruzados que no final do séc. XI se puseram a caminho. Alguns metiam-se por terra, outros por mar, quase sempre em expedições de reis ou pequenos senhores locais. Outras vezes acontecia o mais incrível: chegou a haver uma cruzada de crianças desencadeada por uma visão seguida de uma série de “milagres”. As crianças, umas ficaram pelo caminho até à costa italiana e as que chegaram terão sido vendidas como escravas ainda na Europa. Às vezes as expedições eram de maltrapilhos, em que sobejava a vontade e o proselitismo e faltava a racionalidade e a organização.

Tudo o resto era o panorama habitual nas guerras e invasões: ocupações, cercos, saques, violações, destruição e incêndio de cidades, tudo isto à mão de cruzados de cruz em riste. Não havia quaisquer códigos de conduta que diferenciassem as tropas e combatentes cristãos dos outros, árabes, turcos ou mongóis. Enquanto não se chegava à Terra Santa dizimavam-se populações de judeus e cristãos bizantinos, uns por ódio, outros pela necessidade de obter meios para chegar ao destino, outros ainda por incapacidade de diálogo.

2.“Baudolino”, de Umberto Eco, é um romance das cruzadas que nos apresenta as 3ª e 4ª cruzadas no final do séc. XII e início do séc. XIII. É um privilégio ver um historiador e semiólogo ficcionar uma época que conhece bem e em que se mostram os movimentos das forças em presença observados à lupa. E o olhar que lança sobre a sociedade cristã da Europa Ocidental mostra uma série de características nada lisonjeiras para as forças organizadas à volta do papado e dos soberanos ocidentais. Em tempo de fraca comunicação à distância e da supremacia da força bélica, é de uma Europa fragmentada ainda que se trata, com reinos pouco estabilizados e sujeitos a cada passo à invasão dos mais poderosos. As poderosas cidades italianas passam assim ciclicamente da órbita do papado para a do império sacro-romano, de Frederico I. Noutras épocas, oferecem-se para ajudar os cruzados no transporte para a Terra Santa mas em troca de ajuda para vencer os vizinhos. Constantinopla, símbolo do cristianismo bizantino e cidade-ícone em desenvolvimento e bem-estar, é o objeto do desejo convertido em saque geral seguido de incêndio em 1204. Globalmente o Ocidente inicia um processo de saída das próprias fronteiras que, três séculos depois, se transformará no processo das descobertas.

A Europa do séc. XII é uma sociedade atrasada, muito dominada pela magia e pela religião, que suscitam a mobilização e a crença geral. É pois natural que o empurrão para o exterior com a força do movimento cruzado derive da ideia de salvação ao combater os ocupantes do Santo Sepulcro. Em “Baudolino” os protagonistas comprazem-se em construir universos mágicos hoje impensáveis para nós: manter uma relação amorosa à distância mais estimulante do que o contacto real; desenhar na imaginação o reino do Prestes João, que, para lá do mundo conhecido, ficcionasse a idade de ouro perdida e motivasse uma expedição paralela à das cruzadas, numa espécie de peregrinação para descoberta pessoal; construir um negócio de relíquias em que se explora a crença geral que é capaz de pagar metade do mundo para ver ou tocar um pedaço de madeira ou um resto de têxtil bem-aventurado, seja ele da cruz de Cristo ou da toalha da Última Ceia. Mas perguntar-se-ia: e hoje quem não vive de ficções?

As sociedades nunca estão paradas e se pensámos que a sociedade europeia e ocidental estava estabilizada após o abandono dos impérios, eis que a realidade se encarrega de nos desiludir, para nos fazer cair na ideia de que por detrás dos princípios há (sempre) interesses e controlo de rotas e territórios. A jihad islâmica de hoje, apresentada como regresso às origens do islamismo numa deriva de cruzada antiocidente, é também facto moderno porque corresponde ao falhanço da ocidentalização laicista e desenvolvimentista do Médio Oriente. O Ocidente parece encurralado e de fronteiras permeáveis pelas condições que criou e pelas fragilidades dos regimes democráticos. A força do racionalismo europeu parece vencida pelos literalismos do Islão e pelos patriotismos serôdios. Baudolino, no final da obra, aparentemente derrotado, opta por retomar a expedição em direção ao reino do Prestes João. Mas hoje já não há reinos por descobrir…

(Baudolino, de Umberto Eco)

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