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Sentimento racionalizado

Na segunda-feira, dia 16 de outubro, acordámos para a tragédia com garantias de que nada será como dantes. Soou familiar. Diz-se que o nosso povo tem memória curta, mas não tão curta. Foi também esta a garantia dada após Pedrógão Grande, em junho.

Claro está que em quatro meses não se reestrutura uma floresta nem se reformula uma estrutura de prevenção e combate aos incêndios com décadas de erros acumulados. Nem se mudam mentalidades a quente, menos ainda durante os quentes meses de Verão.

Mas num momento de tamanha gravidade, Portugal não precisava de promessas vãs, que as leva o vento. Precisava de um líder, de um porto seguro a que se atracar. Teve-o, mas teve de esperar até terça-feira à noite para ter, em Marcelo Rebelo de Sousa, aquilo que esperou ter, pelo menos também, de António Costa.

O primeiro-ministro foi a criança do recreio que pressiona a ferida do colega que caiu a jogar à bola e lhe pergunta se “assim está a doer”. Costa escusava lembrar que eventos destes voltarão a acontecer. Isso já todos sabemos ou não estivéssemos a falar de um problema estrutural. Precisava, isso sim, de assumir as dores de todo um país.

Não precisava pedir perdão enquanto António Costa se o não queria e se guarda os pedidos de desculpa para a vida privada. Mas o chefe do Governo não o é na intimidade, é-o publicamente num alto cargo de soberania. O pedido de desculpa feito a reboque da exigência estridente do líder parlamentar do PSD não só pecou por tardio, não convenceu ninguém.

É que António Costa lidera o Governo que a escassos meses da época de incêndios mudou as chefias das instituições incumbidas de prevenir e combater incêndios. Entre essas o próprio comandante nacional da Proteção Civil, que se demitiu em setembro após ter sido noticiado que tirara o curso de Proteção Civil a estudar os mesmos livros de Miguel Relvas, os da “experiência profissional”. Chefias incompetentes: está tudo no relatório da comissão independente nomeada pelo Parlamento.

Ficou patente a impreparação da ministra da tutela, ficou sem explicação por que foi ignorado o alerta em que o IPMA avisou que, domingo 15 de outubro, seria o dia mais perigoso do ano, e por perceber o porquê do Governo não ter decretado calamidade pública preventiva. Mas desta é que vai ser. Agora até haverá margem orçamental para reformar a floresta e reforçar os mecanismos de combate aos incêndios. O que significa que Pedrógão não tinha sido lição suficiente para que o Governo não olhasse a meios para resolver um problema que afeta especialmente, como apontou Marcelo, aqueles que não têm «os poderes de manifestação pública em Lisboa».

António Costa não soube (porque o não é) ser empático, nem mostrar solidariedade com o sofrimento de quem tudo ou tanto perdeu. Costa racionalizou um momento de dor explicando que a sua função não exige lágrimas mas ação. Porém, ninguém queria ver o primeiro-ministro mostrar os mais íntimos sentimentos, bastava a Costa ter agido com sentimento, o que é bem diferente.

Por: David Santiago

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