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«Ségolisme» ou bolha mediática?

Razão e Região

O caso de Ségolène Royal, a candidata francesa do Partido Socialista à «nomination» para as eleições presidenciais, tem vindo a suscitar algumas análises politicamente muito interessantes. Análises de fundo, sobre a natureza da política do nosso tempo. É o caso de Zaki Laïdi, em torno da ideia de «life politics», ou de Jean-Louis Andreani, sobre a «democracia de opinião». É verdade que o «ségolisme» (também chamam aos seus seguidores «royalistes») nasceu sob a forma de «bolha mediática»: um produto instantâneo dos «media», que tão depressa surge como desaparece. Uma erupção cutânea e superficial que a velha política rapidamente absorveria.

Ségolène foi efectivamente catapultada pelos «media» para um palco que é controlado por eles. Mas porquê Ségolène? Porque é Presidente da Região Poitou-Charentes? Porque é mulher? Porque tem quatro filhos? Porque vive com François Hollande, primeiro-secretário do PS? Porque se enquadra à perfeição nos «estereótipos» televisivos? Ou é porque a sua visão da política se aproxima mais da «Lebenswelt» pós-moderna do que da política clássica? Porque ela entra em ruptura com a tradicional «grande narração» política, estilhaçando fronteiras e visões projectuais da política? Porque se aproxima da ideia de «life politics»? Que significado, afinal, poderá ter a sua ousada (e já tão criticada) proposta de controlar os representantes através dos «jurys citoyens»?

A verdade é que a ideia de «life politics», da política como expressão do «vivido», como emergência vital – e não como dedução conceptual -, é aquela que maiores afinidades possui com a lógica e o discurso televisivos. Não é por acaso que a televisão sempre foi desdenhada pela esquerda cultural como produto de direita e mecânica exaltação da vida quotidiana. Ou como mera reconstrução narrativa da realidade quotidiana, sem aparente mediação crítica. O «vivido», sendo o alimento principal do discurso televisivo, surge curiosamente como o alimento essencial da chamada «life politics», numa interessante aproximação ao registo essencial da mundividência pós-moderna. Pois bem. A leitura de Zaki Laïdi tende a evidenciar os traços dominantes do «ségolisme» nos termos dessa «life politics» que parte de baixo, dos problemas do dia-a-dia, anulando a distinção entre alta política e vida quotidiana. Tal como a lógica televisiva, que tende cada vez mais a fazer do cidadão anónimo o verdadeiro protagonista do espaço público e do pequeno problema o centro crítico da sociedade. Diz Laïdi que é por isso – porque «cada cidadão é portador de uma verdade, de um fragmento de experiência e de saber» – que Ségolène Royal é a única personalidade política que «suscita a simpatia dos bloguistas, precisamente porque a filosofia dos blogues repousa na ideia de que cada um pode contribuir com o seu saber, a sua experiência, ao comunicá-la aos outros».

A verdade é que a agenda política de Ségolène tem vindo a evidenciar temas que rompem as fronteiras do clássico discurso da esquerda e que emergem da percepção quotidiana dos núcleos problemáticos da sociedade. Os temas da segurança e da chamada «ordem justa» são exemplos disso. Mas também o da «democracia participativa».

Outro tema decisivo neste processo é o da superação do domínio da lógica político-administrativa partidária (mais conhecida por lógica do aparelho) na escolha dos candidatos às disputas eleitorais. Também aqui se joga um combate extremamente interessante e decisivo entre as lógicas mediática e partidária. Combate que é mais do que uma disputa entre dois tipos de organização («media» versus partidos). No essencial, trata-se de uma disputa entre duas concepções de política e dois modos de compreensão das relações de organicidade entre os candidatos a representantes e os cidadãos. E a verdade é que as velhas relações orgânicas, mantendo a sua importância nuclear na coesão política, deixaram de ter a centralidade que antes possuíam, cedendo o seu lugar a um novo tipo de organicidade simbólica, obtida essencialmente através dos «media».

Ora é aqui que Ségolène irrompe com força na cena pública, tendo motivado um crescimento significativo de novas inscrições no PS com vista à possibilidade de participação na escolha do candidato a Presidente.

Por tudo isto, talvez já não seja possível designar o fenómeno Ségolène simplesmente por «bolha mediática», como o foi logo no início do processo. Mas também será necessário reflectir seriamente sobre o significado profundo da sua última proposta de criação de «jurys citoyens» que avaliem os governos. Vem aí um novo populismo?

Por: João de Almeida Santos

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