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Saramago quer que “O Cidadão de Cidadelhe” não seja apenas «algo simbólico»

No lançamento do vinho, Prémio Nobel da Literatura disse que o país «está em crise»

«Vir a Cidadelhe e não ver o Pálio era como ir a Roma e não ver o Papa». Mais de duas décadas depois, José Saramago regressou, no último domingo, ao “Calcanhar do Mundo”, onde reviu o Pálio guardado religiosamente pelos habitantes da aldeia do concelho de Pinhel e apadrinhou o lançamento do vinho “O Cidadão de Cidadelhe”. O Prémio Nobel da Literatura autografou as mais de 1.300 garrafas do “precioso néctar”, num total de cerca de mil litros, numa iniciativa da Confraria dos Enófilos e Gastrónomos da Beira Serra.

«Graças a esta iniciativa é possível que se acenda uma pequena luz para o futuro» da localidade, salientando a importância do lucro angariado com a venda do vinho ser canalizado para promover o desenvolvimento da pequena aldeia: «Que este vinho, que é um produto de Cidadelhe, seja realmente bom e que seja apenas o começo, que isto não fique apenas como algo simbólico. Tanto mais que a Confraria destina os lucros que resultem da venda do vinho para aplicar no próprio lugar de onde este vinho saiu», realçou Saramago. O Nobel da Literatura catalogou o “O Cidadão de Cidadelhe” como um vinho «ao mesmo tempo leve e sumptuoso. Leve como os ares de Cidadelhe e sumptuoso como o seu Pálio. E também evocador de uma paisagem de um sentido profundo da vida e de um saber ancestral profundo». Saramago foi ainda nomeado confrade-honorário da Confraria dos Enófilos e Gastrónomos da Beira Serra, antes de expressar «toda a gratidão e emoção» pela forma como foi recebido neste regresso à aldeia. Depois de ter provado o vinho, o escritor pôde finalmente concretizar um desejo de vários anos, o de mostrar o pálio de Cidadelhe, «uma preciosidade e uma grande riqueza», à sua esposa, a espanhola Pilar del Rio. Para António Ruas, presidente da Câmara de Pinhel, o vinho será no futuro um «embaixador de Cidadelhe, mas também do concelho», afirmou antes de entregar a “chave de honra” da cidade ao ilustre convidado.

À margem do lançamento do “néctar”, Saramago falou nas vantagens, mas também das desvantagens que o turismo pode trazer à aldeia, que está a ser alvo de um plano de desenvolvimento elaborado pela ADERCI – Associação de Desenvolvimento de Cidadelhe. «Evidentemente que não se pode desprezar o turismo. Mas também não se pode olhar para ele como se fosse uma espécie de monocultura, porque então as pessoas vivem todas para o turismo e não pensam em mais nada», adverte. De resto, «os turistas são como as abelhas» que dão mel, mas também picam, o que quer dizer que «se a presença do turista não for bem orientada, se não assentar no respeito da cultura do lugar, vamos acabar por não saber quem somos», sublinha. Saramago não deixou ainda passar em claro o mau estado da estrada que liga a aldeia a Pinhel, ironizando com a inauguração do novo estádio do Benfica, que fez «tanta gente ficar contente» enquanto Cidadelhe tem que «se resignar a uma estrada velha», realçou, não se ficando por aqui. «É que das estupendas auto-estradas que se têm feito nos últimos anos não sobrou um pouco de dinheiro para reconstruir esta pequena estrada», lamentou. De resto, o Nobel da Literatura considerou que o país está em crise e «ninguém nos diz como havemos de sair». Por fim, Saramago deixou uma pergunta no ar: «Seremos capazes de resistir a uma nova invasão, não de Espanha, como sucedia antigamente, mas da apatia, indiferença e egoísmo?». A resposta está em cada um de nós.

Ricardo Cordeiro

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