Arquivo

Sangue novo em guelra velha

A Índia e a China aproximam-se dos grandes à velocidade de crescimento do bambu. Para a China é um regresso: em 1820, cabiam-lhe 30% do Produto Interno Bruto do mundo; em 1979, só 3%. A decadência não se deveu apenas à ascensão de outros mas também a duas decisões calamitosas: a decisão imperial de se virar para dentro e a decisão pós-imperial de abraçar o marxismo-leninismo (com a invenção suplementar da Revolução Cultural, cereja no bolo da perversidade). A tormenta acabou com a morte de Mao e a chegada ao poder de Deng Xiaoping que tomou duas decisões radicais: reforma interna e abertura ao resto do mundo. (Mao só saíra da China duas vezes, para ir uns dias a Moscovo; Deng, quando era novo, vivera seis anos em Paris — estas coisas contam).

O caso da Índia é diferente: fora sempre aberta ao mundo mas sofrera o domínio colonial britânico e, a seguir à independência (1947), deixara-se tentar por versões de socialismo «light» e por ilusões de não-alinhamento. Só depois do colapso da União Soviética endireitou caminho e a sua economia cresce hoje a ritmo igual ao da China — diz-se que se a China é a oficina do mundo, a Índia é o seu escritório. Todos os dias empresas abandonam por elas o mundo desenvolvido. Num e noutro país há cada vez mais gente nova e entusiasta, cada vez mais milionários, cada vez mais negócios, classes médias cada vez maiores e mais dadas ao luxo. Ao mesmo tempo, alarga-se a distância entre as cidades ricas, modernas, cómodas e os campos miseráveis, arcaicos, insalubres. Milhões de pessoas sobrevivem abaixo do limiar da pobreza — e quer Pequim quer Nova Deli sabem que precisam de as tirar desse buraco fundo.

Aí as águas dividem-se. A China é um regime de partido único (há mais oito partidos políticos mas não passam de ‘heterónimos’, por assim dizer, do Partido Comunista Chinês), de controlo da sociedade civil pelo governo, de polícia política e de presos políticos. A reforma lançada por Deng mudou a economia mas mal tocou no sistema político e vai ser preciso adaptar este àquela. Não será fácil, irá contra o pêlo da ‘sociedade harmoniosa’ controlada pelo partido único e poderá trazer sobressaltos sérios dentro e fora da China. Tal não se passará na Índia, há 60 anos uma democracia parlamentar, vibrante e participativa, jamais perturbada por revolução ou golpe de Estado. (A administração Bush, no seu único acto de visão estratégica, abriu colaboração nuclear com a Índia, marcando assim claramente que ela pertence ao campo dos defensores da liberdade e dos direitos humanos).

E a Europa? Negociamos com eles comércio, energia e ambiente. Quanto ao resto, eles acham que não é connosco. Ao encerrar terça-feira na Arrábida um debate, com indianos e chineses, sobre o papel futuro da China e da Índia no mundo, Lord Carrington, sábio da política internacional, fez notar que ainda há dez anos seria impossível discutir o assunto sem se falar na Europa. Mas é o que acontece agora.

Por: José Cutileiro

Sobre o autor

Leave a Reply