Arquivo

Sanatório. Casa de Passagem

O Caderno Negro

Na Casa de Passagem, a vida e a morte jogavam xadrez. A morte à espreita, vestida de gente. Terceiro piso, segunda ala. O cheiro a vitamina B. E a vida ali, em Primavera, a rebentar de cores. A encosta da Serra.

O tempo médio de permanência era de oito meses e meio. Quem saía levava na bagagem um de quatro rótulos, sem margem para anotações. Curado, melhorado, piorado ou estacionário. Também havia quem de lá não chegasse a sair. Acabava-se de vez o medir da temperatura de hora a hora, os escarros em algodão trancados dentro de pequenos frascos, os raio-X, a tosse seca que matava o peito. Acabavam-se os passos firmes das irmãs-enfermeiras espanholas e os cochichos das criadas, a fazerem eco na solidão dos corredores geométricos – os caminhos da morte.

O sanatório era uma casa de passagem. A morte em cada pilar, a germinar de dentro da terra. Nunca se sabia quem seria o próximo, o favorito dela, vestida de gente. Segundo piso, primeira ala. A morte a bater à porta. E os cortinados da janela com o slogan do regime – “A bem da nação” – a tiritarem de medo.

A irmã Teresa estremeceu quando a viu, sentada na cama do quarto, quando se preparava para ir dormir. Já a tinha visto a rondar o corredor da enfermaria. Olhou-a nos olhos e pediu a Deus que a não levasse. Que levasse outra qualquer. Menos a ela. A ela e a ele. Que o não levasse a ele, também. Estava tão debilitado. Só pele e osso e, mesmo assim, o peito a estremecer-lhe de amor, entre cada escarro de sangue. Os olhos a arder de esperança quando a viam entrar no quarto, olhar meigo e piedade no rosto, termómetro na mão e um sorriso ternura.

“Foi o excesso de zelo, a tua perdição”, disse-lhe a morte, ar frio e seguro, cigarro em punho. A morte era jovem e tinha ar de diva. No Sanatório, a disciplina era férrea e ela, Teresa, sabia que passara todos os limites no dia em que encostou os lábios nele, naquela pele amarela, e lhe beijou os ossos doentes. De nada serviu comer em cantinas diferentes. De nada serviram os elevadores próprios para descer e subir a roupa dos doentes. De nada serviu queimar todas as sobras da comida no crematório a altas temperaturas, com fermol.

De nada servem os soluços do amor diante da certeza da morte.

Com a irmã Teresa, morreu a Casa de Passagem. Ela, a morte, atirou-se às paredes quando a cura da tuberculose chegou.

E quando a morte e o tempo dão as mãos, nasce a ruína.

O Ministro da Saúde e Assistência ordenou que se fechassem as portas. Era 1970 e, a partir de agora, a tripulação do Sanatório era outra. Primeiro os retornados. Depois, os Carnavais da Neve. A seguir, os Motards. Depois o silêncio das madrugadas e as tempestades de almas a gemer quando o inverno voltava a cair. Noites inteiras de vento a uivar de fúria nos telhados. As janelas prestes a ceder à intempérie.

A última tripulação do Sanatório, de que fiz parte, fez-se notar pelo grafitis nas paredes. Templo da fotografia. Noites de Verão na sala que tinha o Bruce Lee desenhado na parede. A luz da lua a guardar-nos da escuridão. Ouvir os murmúrios das almas, a arrastarem-se, sem serem vistas, pelos corredores. Salva-me. Pálidas. A levantarem-se da morgue, a vaguear pelos salões desertos. Era assim o Sanatório que conheci. Ainda com telhado, radiografias no chão e prateleiras com centenas de processos de doentes – ficheiros inteiros com nomes e moradas de gente tão anónima e tão real.

E é por isso que ver os estaleiros das obras montados no Sanatório desorganiza o peito. Por um lado, aquela casa, que um dia o jovem Cottinelli Telmo – uma das figuras mais brilhantes do panorama artístico português – projetou merece viver. Por outro, com a requalificação do Sanatório morre um pedacinho de nós, que se habituou à desordem da ruína.

O Sanatório vai deixar de pertencer à tripulação dos que lhe fizeram a ficha, nos últimos anos, com fascínio e interesse. O Sanatório vai enfim ser um grande hotel de montanha. Outra vez uma casa de passagem. Maldição.

Por: Rosa Ramos

Sobre o autor

Leave a Reply