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Samantha Fox e outras obras seminais

Estamos em plena época de guilty pleasures. O revisionismo – e a nostalgia –tornam interessante mesmo o que nos parecia imprestável, por vezes com uma forte caução intelectual. Isso acontece na moda, que ciclicamente vai repescando as décadas passadas para as novas colecções. Acontece no cinema, onde o remake é quase um género por direito próprio. E acontece, sobretudo, na música. Sei que é assim, porque sou um praticante dessa nostalgia e desse revisionismo. Quando descobri o Napster, e pude, como milhões de outras pessoas, descarregar músicas para o p.c. sem pagar um tostão, fui evidentemente ouvir canções que não conhecia e alguns temas favoritos que não tinha em disco mas, sobretudo, desencantar bandas e melodias com as quais cresci, e que nunca mais tinha ouvido. E, como imaginam, boa parte dessas canções eram produtos pop que não merecem a posteridade, mas que, para quem as ouviu na infância e na adolescência, despertam imediatamente memórias e sensações difíceis de definir por outra forma de expressão.

Algumas coisas são muito más: «The Final Countdown», «Life is Life», «Voyage, Voyage». «Touch Me». Outras pareciam mais descabidas na altura do que hoje: os Afonsinhos do Condado, por exemplo. E há ainda o que julgava música de deitar fora, e que hoje ganhou uma curiosa respeitabilidade, como os Duran Duran. Existe, então, uma noção bastante epocal e enganadora da qualidade e da durabilidade de um produto cultural. Em vinte anos, uma brincadeira descabida torna-se uma «obra seminal». Uma geração interpreta ironicamente o que antes se levou a sério, ou torna erudita a referência mais rasteira.

Quem imaginou que uns grunhos festivos como os Beastie Boys ganhassem uma aura de mestres? Mas isso importará muito a quem «saca» canções da Net porque essas canções o marcaram? Diria que para quem tem fumos intelectuais (como eu), uma elaboração pós-moderna sobre o lixo apaga, como água lustral, as embaraçosas fraquezas juvenis. Mas que importa isso? Mesmo que os críticos não ressuscitem «We’ve Got Tonight», de Kenny Rogers e Sheena Easton, será sempre a canção ao som da qual eu dancei enfim com a amada, no liceu (sem consequências). O mesmo se diga das baladas dos noruegueses A-Ha, que chegaram a ser (valha-me Deus) a minha banda favorita, também por razões que a razão não desconhece. Fazer parte de uma «geração» (como nos mostraram, por exemplo, as brilhantes séries televisivas de Dennis Potter), passa muito pela relação com os «sucessos populares» com os quais se cresce, sejam perenes ou não. As canções são invólucros de memórias, e isso é o que é perene. Mesmo que sejam canções da Princesa Stéphanie.

Por: Pedro Mexia

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