Começou, na terça-feira, no Tribunal da Guarda, o julgamento do processo cível que opõe Lurdes Saavedra, vereadora da Câmara da Guarda, a Esmeraldo Carvalhinho, seu antecessor no pelouro do Ambiente e actual vereador em Manteigas, por alegadas ofensas e injúrias à honra, dignidade e bom nome da queixosa em dois artigos de opinião publicados no semanário “Terras da Beira”.
Na primeira sessão, João Bandurra, Artur da Graça, Artur Fonseca, Manuel Sousa, António Robalo, Crespo de Carvalho e Pedro Tavares testemunharam por Lurdes Saavedra, enquanto Vítor Santos, Lemos dos Santos e Rui Isidro defenderam o autarca manteiguense. Faltaram à chamada Joaquim Valente e Virgílio Bento, que também estavam arrolados por Esmeraldo Carvalhinho. Em causa está o conteúdo do seu primeiro texto como colunista do “Terras da Beira”. Publicado a 4 de Outubro de 2007, nele analisou os problemas ambientais do rio Diz, em especial a má qualidade das águas, devido, alegadamente, a descargas da fábrica que a família Tavares tem nas proximidades. Esmeraldo Carvalhinho responsabilizou mesmo a sua sucessora pela situação e, referindo-se ao executivo camarário, disse que «basta uma batata podre para contaminar toda a tulha». Na semana seguinte, numa conferência de imprensa improvisada após uma reunião de Câmara, a visada devolveu as acusações e imputou o problema ao seu antecessor, que fora administrador dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento.
Terá sido nessa função que o cronista assinou um despacho em que «os Serviços Municipalizados autorizam a ligação dos efluentes domésticos e industriais» provenientes da fábrica, nos termos da lei, lê-se do despacho instrutório do processo. A vereadora usou ainda do direito de resposta no semanário 15 dias depois do primeiro texto. Contudo, nessa edição, Esmeraldo Carvalhinho escreveu sobre a declaração da vereadora. «Pese embora não conheça o conteúdo, conheço a forma mal educada, boçal, arrogante e agressiva de tal resposta», publicou, referindo-se às palavras de Lurdes Saavedra. A visada não gostou dos termos usados pelo ora arguido e avançou para tribunal, reclamando uma indemnização de sete mil euros. Na passada terça-feira, a atestar que as críticas redigidas por Carvalhinho tiveram eco em toda a região, testemunharam Artur Fonseca, dirigente do PS no concelho da Covilhã, e Manuel Sousa, dentista em Viseu. Lemos dos Santos não se mostrou tão convicto neste particular. Referindo-se aos textos publicados, a testemunha de defesa defendeu que «no concelho [da Guarda] tiveram algum impacto, mas na região não tiveram de certeza».
Na acusação, várias testemunhas – como António Robalo, vice-presidente da queixosa na Pro-Raia – garantiram que a autarca ficou «fragilizada e melindrada» com a situação, «mesmo no plano físico». Inquirido sobre a alegada intenção de atingir a honra de Lurdes Saavedra por parte de Esmeraldo Carvalhinho, Pedro Tavares contextualizou o início da controvérsia. Para o empresário, as críticas são tão mais relevantes «quando a pessoa que escreveu tem conhecimento e responsabilidades no assunto. Só tinha como sentido a injúria», declarou. Quanto a outros contextos, Vítor Santos foi o único dos elementos do executivo guardense a comparecer em tribunal. O vereador defendeu Esmeraldo Carvalhinho – por quem tinha sido arrolado como testemunha –, alegando que «quem exerce cargos públicos deve estar preparado para a crítica». No entanto, considerou que, «de maneira alguma Esmeraldo Carvalhinho quereria atingir quem quer que fosse, muito menos Lurdes Saavedra».
Questionado por Nabais Caldeira, advogado da queixosa, Vítor Santos alegou que o seu relacionamento com a “colega” na maioria socialista na Câmara da Guarda é «meramente institucional» e que não notou que Lurdes Saavedra tivesse ficado «particularmente abalada» aquando dos factos. Dizendo-se «neutro», o vereador justificou a falta de diálogo com a visada pelo facto de, em 2005, ter sido «convidado para trabalhar e não para conversar». Sobre a «reacção oral» de Lurdes Saavedra aos jornalistas, no final de uma reunião de Câmara, Vítor Santos disse não a compreender por ter decorrido num «local desenquadrado» – a sala das reuniões de Câmara. Este depoimento mereceu de Nabais Caldeira uma conclusão irónica: «Temos uma Câmara que só trata de assuntos neutros», disse.
A O INTERIOR, Lurdes Saavedra disse que só falará no final da acção, tal como Esmeraldo Carvalhinho, que considerou «completamente inoportuno» comentar o assunto. «Não respondo enquanto o julgamento não tiver acabado», disse. Contudo, admitiu que foi proposto um acordo para que o caso se resolvesse com um pedido de desculpas, mas o vereador da Câmara de Manteigas recusou por discordar dos moldes da proposta. «Não cometi nenhum crime», acrescentou. O julgamento prossegue na tarde de 3 de Dezembro.
Comentário
Luís Baptista-Martins
O julgamento
Há três semanas comentei o paradoxo de Lurdes Saavedra, vereadora da Câmara da Guarda eleita na lista do PS, ter como testemunhas João Bandurra, vereador eleito pelo PSD, e Crespo de Carvalho, putativo candidato laranja à Câmara, num processo contra Esmeraldo Carvalhinho, ex-vereador socialista, que arrolou como testemunhas Joaquim Valente, Virgílio Bento e Vítor Santos, os restantes membros do actual executivo socialista (com Lurdes Saavedra). Paradoxal e absurdo porque, supostamente, a vereadora deveria contar com a solidariedade dos seus camaradas da lista socialista. E porque, na origem da acção, estava a defesa de críticas de Carvalhinho ao seu exercício enquanto vereadora. Procurámos então, informativamente, saber como era possível isto acontecer… Ninguém quis falar, esclarecer, evidenciar a sua posição (referir que apenas Virgílio Bento mostrou algum desconforto com a situação, mas não quis comentar).
O que menos me interessa é o conteúdo do artigo de opinião de Esmeraldo Carvalhinho, que esteve na origem de tudo. Aliás, em nome da liberdade de expressão, o ex-vereador tem todo o direito em opinar e comentar aquilo que lhe aprouver. As pessoas públicas, os políticos em especial, continuam a não saber conviver com a crítica e só gostam da liberdade de expressão quando esta lhes interessa, mas quando são os outros a utilizá-la… «aqui d’el rei que me estão a atacar». Admito, porém, que Carvalhinho recorreu a uma linguagem, porventura, excessiva e desnecessária. E por isso Lurdes Saavedra recorreu ao tribunal – sentiu-se enxovalhada pela linguagem vexatória utilizada. Ao tribunal caberá decidir se Carvalhinho atentou ou não contra o bom-nome e a honorabilidade de Saavedra…
Mas aquilo que mais me interessa neste processo é a leitura política – tentar perceber o espantoso e original: os colegas de vereação de Lurdes Saavedra foram arrolados como testemunhas de Carvalhinho, mas que atitude teriam perante o juiz? Iriam estar efectivamente a ajudar o ex-vereador a defender-se? Não perceberiam a exposição a que iriam estar sujeitos? E as consequências dessa decisão? Não perceberiam que isso implicaria assumir publicamente uma ruptura com a vereadora Saavedra (convidada por Valente para a lista do PS)?
Como os protagonistas não quiseram esclarecer o que se passa no seio do executivo (e que já toda a gente percebeu – Lurdes Saavedra está a ser marginalizada pelos seus pares), tivemos de aguardar pelo julgamento. Joaquim Valente e Virgílio Bento faltaram – voltarão a ser chamados em Dezembro. Mas Vítor Santos lá esteve. Quando Nabais Caldeira, o advogado da queixosa, quis que o tribunal conhecesse o estado de relações entre os dois vereadores confirmou-se o inefável mal-estar de Santos. Inebriante foi quando se percebeu que, nos últimos meses, nem sequer se falam, apesar de Vítor Santos ter afirmado que «ainda na semana passada estivemos numa reunião», mas sem se falarem, concluiu-se. Insistiu o causídico num diálogo abrupto: – Cumprimentou Lurdes Saavedra quando chegou a este tribunal? – Eu já cá estava quando chegou, respondeu Vítor Santos. – Mas cumprimetou-a?, repetiu Caldeira. – Eu já cá estava, voltou a dizer Santos…
E o resto do diálogo, pouco edificante, nem merece comentários. Vítor Santos tinha aberto a “caixa de Pandora”. Independentemente da sua opção e do direito legítimo de estar com Carvalhinho, a sua posição envergonha o executivo de que faz parte e implica várias consequências, porventura não percebidas pelo próprio. E agora que fará Valente? Irá pelo mesmo diapasão? Concorda com Vítor Santos? Se sim, terá de demitir imediatamente Lurdes Saavedra (se esta não aceitar sair, terá de lhe retirar os pelouros correndo o risco de o executivo socialista perder a maioria). Se não o fizer terá de demitir Vítor Santos, pois não é tolerável que, publicamente, se assumam posições desta índole entre vereadores do mesmo executivo. E depois veremos o que Bento e Valente dirão em tribunal, mas já se percebeu que este processo irá embaraçar o executivo e fragilizá-lo pela hipocrisia em que tem vivido nestes últimos meses e pela falta de solidariedade entre pares. Nesta “paz podre” é que não se pode governar o município.
Igor de Sousa Costa