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Revelado o nome da “Velha”

Isabel Gil pode ter sido a benemérita por causa de quem, há mais de 300 anos, Aldeia Viçosa celebra o “Magusto da Velha”

Reza a história que não há um único ano em Aldeia Viçosa sem “Magusto da Velha”. A festa, realizada impreterivelmente a 26 de Dezembro, acompanha as gentes da antiga Vila do Porco há pelo menos 310 anos – um ritual que tem tanto de antigo como de misterioso. Actualmente, a freguesia do concelho da Guarda tem direito a uma renda perpétua de 14 cêntimos por trimestre, deixada por uma benemérita abastada.

Mas, este ano, José Manuel Coutinho, historiador natural da freguesia, lançou o livro “O magusto – por obrigação e devoção”, em que revela novos elementos sobre aquela que é a mais antiga tradição do Vale do Mondego, única em Portugal. «Só uma velha muito rica poderia ter deixado semelhante legado e, por isso, dificilmente seria da aldeia», adianta. Contudo, existe um misterioso sepulcro que ocupa um lugar proeminente na Igreja Paroquial. Foi essa a pista que o historiador seguiu para chegar ao nome de Isabel Gil. «O lugar de destaque na morte poderá ter sido uma recompensa», justifica. Ainda assim, José Manuel Coutinho acredita que «mais vale entender o contexto da dádiva do que saber o nome da benemérita, que pode ser sempre duvidoso». Por isso, e uma vez que «não existem certezas», a obra avança outras 17 possibilidades de nomes para a enigmática “Velha”.

Apesar deste quebra-cabeças de séculos que a Aldeia Viçosa tem por resolver, a verdade é que não há ninguém na freguesia que não saiba de “cor e salteado” a história do peculiar magusto, em que a Torre da Igreja é transformada num altivo castanheiro.

Viviam-se tempos de fome e havia uma velha – tão velha quanto rica (e amiga da folia, conta-se) – que deixou um legado “sui generis” à Igreja da Vila do Porco: uma herança de 24 escudos e 60 centavos. O donativo foi acompanhado de indicações precisas. O dinheiro deveria ser usado para que, todos os anos, o povo pudesse comer castanhas, lançadas da Torre sineira da Igreja para o adro e assadas no fogo do Natal. Em troca, e em jeito de agradecimento, as gentes da aldeia deveriam rezar-lhe um “Padre Nosso” pela alma.

Pois então, o ritual mantém-se quase intocável e consiste em atirar mãos-cheias de castanhas do alto do campanário, onde os habitantes se acotovelam para ver quem apanha mais. Depois, são assadas no madeiro de Natal que ainda ali arde. Pronta está também uma barrica de vinho – este ano a Quinta de S. Lourenço ofereceu 150 litros – para ajudar as bocas mais secas. E há muitas, sobretudo por causa das “cavaladas”, uma tradição associada ao magusto e que não é mais do que saltar para as costas de quem se põe a jeito ao baixar-se para apanhar as castanhas. É uma brincadeira pouco “católica”, é certo. E os praticantes já escasseiam. Depois das castanhas começa o baile, que a noite é de folia. Só quando nasce a manhã é que se regressa a casa, mas não antes de rezar o tal Padre Nosso pela alma da “Velha” – que, afinal, também gostava da folia.

A Junta de Freguesia voltou, este ano, a pagar os 150 quilos de castanhas. Uma tradição que Baltazar Lopes, presidente há quase 20 anos, não dispensa. «É um ritual a preservar», afirma. Não sem recordar: «Há uns anos o Instituto de Gestão do Crédito Público quis comprar-nos a herança por três mil euros, mas nós recusámo-nos a vender». De quatro em quatro anos, a Junta organiza uma sessão solene em que são homenageadas personalidades ligadas à Aldeia Viçosa. Este ano, receberam a medalha de mérito José Manuel Coutinho, o cónego Abel Albino (pároco da aldeia durante mais de 25 anos) e Mercedes Prieto (médica espanhola).

Rosa Ramos

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