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Respeito pelo Património

A cidade da Guarda apresenta vários casos de anacronismo, de acrescentos ou pormenores fora do tempo. Por exemplo na catedral que, de construção concluída no século XVI, apresenta uma gárgula inspirada num polícia do século XIX. Não há aqui viagens no tempo: apenas o sentido de humor dos então responsáveis pela restauração da sé, tornada necessária após um longo período de desleixo. Esse pormenor não parece hoje ofensivo, tão bem integrado que está no conjunto, e é encarado pelos habitantes da Guarda como uma piada que atravessa os séculos.

Também na Praça Velha, houve outras intervenções, já no século XX, bem debaixo dos bigodes da gárgula do polícia. Uma casa anexa à catedral foi demolida, as escadarias de acesso à porta norte foram modificadas, foi demolido o coreto central e substituído por uma estátua de D. Sancho I, foram arrancadas várias árvores, a antiga calçada foi arrancada e substituída pelo atual e perigosamente desnivelado lajedo de granito; a estátua do D. Sancho foi retirada do local. A maior parte das vezes interveio-se mal. É verdade que a casa anexa à catedral foi bem demolida, mas tudo o resto foi mal feito.

Numa cidade tão velha, deveria falar-se sobretudo em manutenção. Quando se tem um casco histórico da qualidade que poderia ter mas não tem o nosso e quando se pensa nos séculos que passaram desde a fundação da cidade até hoje há que, antes de mais, mostrar algum respeito. Todas as intervenções no centro histórico deverão por isso ser bem pensadas e publicamente discutidas e devemos evitar impor ao futuro a nossa atual visão das coisas (como nos impuseram os que destruíram ou permitiram a destruição das antigas muralhas). Para isso, temos as oportunidades que nos dão os edifícios construídos de raiz no nosso tempo.

Não me entendam mal, que não temos que manter tudo integralmente como estava. A manutenção do património dá-nos muitas vezes a oportunidade de corrigir o que não estava bem. Muitos interiores de casas antigas, com as suas divisões minúsculas e as paredes em madeira e barro são hoje inaceitáveis e está bem redistribuir o espaço e aproveitar os modernos materiais para melhorar o conforto dos habitantes e a própria durabilidade do edifício, mantendo a fachada original.

Já não será aceitável, por exemplo, a eliminação dos gradeamentos do edifício dos antigos paços do concelho. Esses gradeamentos são um dos elementos marcantes e distintivos da Praça Velha e estão presentes em inúmeros postais e monografias. Retirá-los agora é uma imposição aos cidadãos futuros da cidade do ponto de vista atual, transitório, de um mero mandato autárquico, sobre qual deve ser o aspeto da zona mais icónica da cidade. É verdade que os edifícios que rodeiam a praça precisam urgentemente de recuperação. Alguns ameaçam ruína e todos precisam, pelo menos, de pintura. Mas isso não pode ser pretexto para obras “modernaças”, tributárias de opções estéticas de validade precária e, pior ainda, feitas sem a prévia e devida discussão pública.

Por: António Ferreira

Comentários dos nossos leitores
Anibal Pina Correia anibal.pina.correia@hotmail.com
Comentário:
Óbvio que concordo com António Ferreira. A desculpa de que o arquitecto projectista tem uma obra notável espalhada por diversos cantos do país não chega para deixar passar, sem contestação, mais uma afronta aos valores culturais da nossa cidade. Haveria maneira de fazer coexistir os gradeamentos seculares com elementos envidraçados interiores. Não era novidade, pois isso tem sido feito, com resultados aceitáveis, em muitas edificações semelhantes por esse país fora. Assim houvesse vontade e competência para o fazer! Agora, retirar tão somente tais gradeamentos é uma enormidade que nos indigna!
 
Antonio Pedro aalvespedro@uol.com.br
Comentário:
Boa análise. Inteiramente de acordo.
 
luis cunha luis.cunha.dux@gmail.com
Comentário:
Subscrevo na íntegra. Parabéns!
 

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