“No Natal, às vezes nasce o Menino Diabo”
(título da I Parte do livro “Meu Pé de Laranja Lima”)
1.Reler um livro é quase sempre um exercício de preguiça perante um estímulo que nos agradou e que ameaça ter o mesmo efeito uma segunda vez. É como um decalque sobre algo já feito. Para além do efeito de facilidade, tem também a faculdade de ser um vício no sentido original do termo, de desnecessário e irresistível. No final, no entanto, sentimos que somos outra pessoa a ler o mesmo livro e que o próprio livro resulta outro dessa leitura.
Na semana antes do Natal, ao procurar apanhar uns livros caídos para trás de uma estante, encontrei um livro há muito tempo desaparecido, em tudo ajustado ao Natal, que me tinha dado imenso prazer ler há cerca de 30 anos atrás: Meu Pé de Laranja Lima, de José Mauro de Vasconcelos. E foi a recordação desse encanto e o milagre deste reencontro que me empurrou para uma releitura que fiz em poucas horas por ser um livro que puxa por nós e por ser capaz (pela emoção e pela comoção) de nos desenterrar do pior de nós. Uma receita simples: um livro construído a partir de diálogos de uma criança precoce na relação com os adultos mas que se deixa envolver nas malhas da fantasia com os heróis das suas bandas desenhadas e dos seus filmes. O reino da fantasia leva o Zezé a manter conversas com o seu pé de laranja lima, a apanhar boleia na traseira dos automóveis, a pregar partidas aos adultos, imediatamente castigadas em casa com surras desproporcionadas. Mas a fantasia não morria com as surras tatuadas na sua pele. Um dia, subitamente, com 6 anos, Zezé cresceu, ao descobrir… a dor.
O que nos admira e “resulta” nesta leitura de lágrima fácil (Tão bom sentir o nó na garganta e a humidade nos olhos!) é a lucidez de uma criança a conversar taco a taco com os adultos e a reconhecer que é um problema para eles. “Eu não presto mesmo. Sou tão ruim que quando chega o Natal acontece aquilo: Nasce o Menino Diabo em vez do Menino Deus!…”
2.Ao reler Meu Pé de Laranja Lima, deparei-me também com o fenómeno de leitura das épocas agitadas como o Natal, em que há muito movimento nas casas, em que se fazem viagens, em que há sempre imensa gente a circular à nossa volta. Tenho uma dúzia de livros na fila de espera para serem lidos, entre livros da área profissional que exerço e de pura literatura, mas alguns não aguentariam o barulho da época de Natal, feito de jingles cem vezes ouvidos e de slogans de perfumes que já não suportamos, para além da inquietação de qualquer coisa que está para vir e nunca mais chega. Por alguma razão já há vários anos me esqueço de passar os meus CD de Natal ou de os levar para o carro. A parafernália de mensagens de TV e PC é tal que muito menos resta energia para o volume de um livro. O carácter “leve” desta obra mas também rica em símbolos de generosidade e emoção veio ajustar-se bem à época porque cabia em pequenos momentos de pausa após as exigentes incursões gastronómicas ou as itinerâncias das compras.
3.Três notas para concluir. A primeira é que é possível ler obras estimulantes, sendo ao mesmo tempo obras para leitores inter-geracionais (isto é, de todas as idades), que nos enriquecem com experiências extraordinárias. A segunda é que não temos que ter medo da ternura e do sentimento na obra literária moderna. Finalmente uma das dificuldades maiores do leitor potencial no mundo actual, para além do cerco de mensagens light que nos querem continuamente impingir e que chocam com o desafio que o criador nos lança, é a ausência de espaços de solidão em casa. Que recanto é suficientemente reservado que não interrompamos a leitura após dez míseras páginas? Que arrojo de linguagem ou de estrutura narrativa sobrevivem? A ideia de concentração está mesmo em decadência. Como se tudo vivesse de vários “centros” de interesse ao mesmo tempo.
Por: Joaquim Igreja