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Regionalizações

Theatrum mundi

Se dúvidas ainda houvesse, a reforma territorial ensaiada pelo último executivo do PSD está definitivamente enterrada, depois de o actual governo ter extinto, na semana passada, todas as áreas metropolitanas à excepção daquelas que realmente o são, isto é, Lisboa e Porto. Com isto, o plano Relvas está condenado a passar à história como mais um episódio lamentável daquilo que é o longo rosário de incoerências da direcção do PSD em termos de regionalização. Se hoje o estado português é o estado mais centralista da Europa, e uma máquina altamente ineficiente, isso deve-se, em grande medida, ao PSD. Apesar do imperativo constitucional, do amplo consenso à volta da questão e das duas maiorias absolutas consecutivas que trouxeram estabilidade política, o cavaquismo foi incapaz de passar à prática e reformar o estado. Apresentado durante muito tempo como grande força modernizadora, intérprete do desígnio europeu, é hoje inequívoco que o cavaquismo foi uma oportunidade perdida para Portugal.

Em Espanha, após 1977, a reforma do estado transformou-se na peça essencial do programa de modernização e democratização. Os novos dirigentes compreenderam, quase sem excepção, que não era possível fazer a transição para uma Espanha moderna e democrática sem operar uma verdadeira revolução na forma de entender o território, de o organizar e de o dinamizar. E não cometeram o erro de circunscrever a criação de comunidades autónomas às ilhas – Baleares e Canárias – ou aos territórios históricos – Catalunha, Galiza e País Basco; a autonomia foi entendida como um sistema coerente de relações de poder institucionalizadas que atribuiu aos diferentes territórios e populações do estado interlocutores legítimos, e com peso considerável, face ao poder central. A criação de entidades intermédias entre o poder central e os municípios foi fundamental para pôr em movimento uma estratégia de desenvolvimento integrado em Espanha que, em 30 anos, deu resultados inegáveis. Grande parte das reticências de bascos e catalães face ao modelo fiscal da autonomia deve-se precisamente ao facto de ele ter permitido diminuir o fosso entre comunidades ricas e pobres. Assim, muitas regiões do interior de Espanha são hoje pólos económicos dinâmicos que fixam população porque souberam e puderam proteger os recursos naturais, as tradições populares e o património arquitectónico de forma a desencadear dinâmicas de desenvolvimento sustentável.

De volta a Portugal, nunca é demais lembrar que o cavaquismo foi contemporâneo do primeiro ciclo de vida da autonomia em Espanha, enquanto hoje se vão aprovando já, por toda a geografia espanhola, novos estatutos políticos aprofundados em competências e poderes. Passado o cavaquismo, o PSD de Marcelo Rebelo de Sousa decidiu jogar com as regiões e levantar fantasmas descabidos em que nem o próprio acreditava. No final das contas, a objecção de fundo de MRS – que se declarava regionalista convicto – parecia resumir-se ao número de regiões (cinco seria perfeito; sete, um exagero!!!), mas o que a campanha do ‘não’ conseguiu foi demonizar a própria ideia de regionalização, e a direcção do PSD não mais se conseguiu libertar desse fantasma. O lamentável plano Relvas só acrescentou confusão administrativa, sobrepondo um mapa sem sentido aos já existentes. Plantou áreas metropolitanas da serra da Estrela ao Algarve, enquanto certos municípios se marginalizaram, ou foram marginalizados do processo e caíram nos interstícios das mais variadas associações. Contudo, e levando o método ao absurdo do seu sucesso extremo, Portugal poderia vir mesmo a tornar-se uma só área metropolitana… As dificuldades e assédios a que tem estado sujeito o governo de Sócrates não deixam antever grandes possibilidades de regresso do projecto. E isto apesar do seu anúncio recorrente. É que para lá dos fantasmas agitados aquando do referendo, acrescem agora as perturbações do défice. A Espanha das autonomias, essa, não tem défice; já é super-havitária.

Por: Marcos Farias Ferreira

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