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Reciprocidade

Reciprocidade não é um conceito fácil de analisar. Há quem fale da norma de reciprocidade, há quem fale do princípio de reciprocidade. Para entender a diferença, é preciso entender a relação que existe na correlação entre ética, lei, direito, costume e objectivo do conceito. O primeiro que parece ter falado sobre a ideia de reciprocidade, foi Cícero.60 BC ao afirmar: Não há dever mais grato e indispensável que o de devolver uma amabilidade. A maior parte dos seres humanos tem por hábito desconfiar de se lembrar de um benefício recebido como dádiva,  que lhe foi outorgada. A partir de Cícero, muitos autores, ao longo dos séculos,  especialmente a partir do Renascimento, têm-se pronunciado sobre este conceito, entre eles, eu próprio. O conceito tem sido usado ao longo dos séculos, especialmente a partir do Renascimento. Porém, quem fez do conceito um uso útil para a ciência, foi o fundador da Antropologia, o Professor, Marcel Mauss, quem no seu texto do ano 1923-24, Essai sur le don. Forme et raison de l’echange dans les societés archaïques, publicado em L’Année Sociologique, Nouvelle Série, Félix Alkan, Vol I, 1925. Há versão para língua lusa na editora Edições 70: Ensaio sobre a dádiva, edição de 2001. A ideia é simples e útil e retirada de sociedades que trocam bens e serviços sem dinheiro, como a Etnia Kwakiutl, no Canadá, onde os grupos que têm excesso de produção e não têm como a manter em condições de consumo, o correspondente Chefe tribal convida a maior parte dos clãs  vizinhos, para comerem e beberem até se até se fartarem. A festa pode durar dias ou semanas. É, conforme Mauss, um investimento.  Um dia virá em que o clã que convida não tem produtos e quem aceitou o convite, está obrigado a retribuir a quem ofereceu primeiro. É uma circulação de bens e pessoas que tem o carácter de dádiva ou oferta, como defino no meu livro de 2007: O presente, essa grande mentira social. A mais-valia na reciprocidade. Ensaio Antropológico de Sociologia Económica,  Afrontamento, Porto.  Mauss define este facto como uma dádiva que deve ser devolvida. Devolução que, conforme o sábio Maori Tanata Ranai -piri, é obrigatória por se encontrar nos bens oferecidos uma alma ou hau que pune se a oferta não é entregue. Ideia estudada por Mauss para provar que em muitas sociedades do mundo há colaboração gratuita e não apenas mercado liberal para comprar e vender por dinheiro. A questão que coloca a si próprio Marcel Mauss, herdada por resolver pelo seu discípulo Lévi-Strauss, é qual é a norma, lei ou costume que obriga à devolução e  não ao uso de dinheiro. Encontrámos a resposta nas relações parentais, vizinhais e do clã que oferece e devolve. O hau é apenas uma forma de expressão desta necessidade de circular bens ligado a pessoas. Compara as sociedades não ocidentais, unidas pela família e a religião, largamente respeitadas, com as do ocidente, na qual existe a propriedade privada dos bens, super imposta às relações de parentesco e de religião, propriedade privada que define a pertença dos meios de produção para  poucos. Tal facto, associado à obtenção de mais-valia (conceito retirado dos textos de Karl Marx) eles, proprietários dos meios de produção, leva a que a maior parte da população seja incapaz de resolver. Acabando por definir a obrigação da dádiva que existe entre os proletários do mundo ocidental, de forma gratuita, tal como entre os Massim do Arquipélago Kiriwina. Etnia da Papua Nova-Guiné que circula bens no ritual Kula ou navegação entre as várias ilhas para estabelecer relações comerciais e parentais associadas aos bens que a pretensa noiva deve possuir para poder casar e incrementar os bens do homem que desposa. Duas ideias finais: a norma de reciprocidade, direito adquirido nas trocas sem dinheiro, em sociedades com ou sem mercado monetário; e o princípio de reciprocidade, existente em todos os sítios do mundo, como colaboração para os que pouco ou nada têm. Lévi-Strauss ficou com o trabalho de definir as estruturas do parentesco, o que fez no seu livro de 1949, e de abrir a ideia ocidental para entender que os aborígenes, eliminando a palavra selvagem, tinham normas e lei que  orientavam o seu comportamento parental e de mercado. Com ou sem mercado monetário, a reciprocidade era, como diz no seu trabalho, um princípio universal de mutualidade e solidariedade. Ideia aprendida ao comparar as formas de interacção social entre sociedades no meio das relações de mercado com mais- valia, que sabiam usar as noções de reciprocidade em relação mútua, fugindo às regras do mercado com inteligência. O método comparativo, já existente na nossa ciêncian, passou a ser uma metodologia obrigatória no entendimento do pensamento social, costumes, ideias e sentimentos.

Por: Raúl Iturra

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