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Razão e transcendência

Razão e Região

Por ocasião da visita de Bento XVI a Portugal, e a propósito do discurso que pronunciou, Terça-Feira passada, em Figo Maduro, reproponho aqui uma reflexão sobre o tema «Razão e transcendência», que esteve no centro de um debate entre o filósofo alemão Juergen Habermas e o então Cardeal Joseph Ratzinger.

A propósito das conhecidas polémicas levantadas pela conferência que Bento XVI fez, há alguns anos, na Universidade de Ratisbona, onde referiu a posição de Manuel II Paleólogo sobre Maomé e fundamentou a exigência de um uso religioso da razão («logos»), julgo interessante repropor, nesta ocasião, ao leitor algumas reflexões sobre um diálogo do então Cardeal Joseph Ratzinger com o filósofo alemão Juergen Habermas, na Katholische Akademie Bayern, em Janeiro de 2004, acerca da relação entre razão e religião em contexto democrático. O que achei interessante foi a confluência de ambos na necessidade de um encontro produtivo entre razão e religião. Refutando as tentativas de desintegração da razão ou da religião, ambos reivindicam as virtudes de uma autolimitação destas esferas e de uma mútua capacidade de aprendizagem. Habermas defende a autonomia da razão e a capacidade que as sociedades democráticas têm de fazer derivar a legitimidade constitucional de procedimentos formais que tornam possível uma livre e racional dialéctica comunicativa entre os cidadãos com vista à produção de efeitos políticos institucionais para uma constituição legítima de governos democráticos. Ratzinger, assumindo que também se podem verificar patologias na religião (e os tempos que correm são prova disso mesmo e Bento XVI acaba de as reconhecer como uma gravosa insídia interna), assume como imperativo «considerar a luz divina da razão como um órgão de controlo, pelo qual a religião deve deixar-se clarificar e regulamentar». Mas não menos necessário se torna, no seu entendimento, declarar os limites da razão, reconhecidas também as suas patologias (a bomba atómica ou o homem considerado como simples produto de laboratório, com o absoluto poder de criar e de destruir), assumindo, ao mesmo tempo, o dever de escutar a lição ética das grandes tradições religiosas da humanidade. Até porque a razão, designadamente na sua forma científica, não só não gera por si uma ética como tem vindo a desempenhar um papel essencial na destruição de antigas certezas morais. Lembremo-nos da questão do geocentrismo (versus heliocentrismo), das posições de Copérnico e de Galileu e da posição que o Cardeal Ratzinger – no mesmo momento em que o processo a Galileu acabava de ser positivamente reavaliado pela Santa Sé – assumiu na revalorização da posição da Igreja (um geocentrismo moral) em face do legado científico de Galileu. Também então a razão científica dera um passo decisivo na destruição de uma antiga certeza moral. O que Ratzinger sublinhava, e continuou a sublinhar, era a valência metacientífica das visões do mundo, a sua igual facticidade e dignidade, o seu igual valor histórico, recusando à ciência a pretensão de se constituir como a «medida de todas as coisas». A razão, seja ela científica ou processual-democrática, nunca esgota, no entendimento de Ratzinger, as fundações éticas do edifício humano. Por exemplo, os direitos humanos transcendem a dimensão de qualquer maioria política, ainda que formada democraticamente, de acordo com regras racionais. É por isso que a razão se deve autolimitar.

Por sua vez, o esforço de Habermas tem consistido na procura de sólidas bases teóricas que justifiquem a laicidade radical da democracia, encontrando na razão – e não em bases religiosas, metafísicas ou, de qualquer modo, pré-políticas – os fundamentos da legitimidade originária do contrato social. E foi no chamado «patriotismo constitucional» que ele encontrou o referente motivacional para um cidadão laico, emancipado e participativo. Mas foi no «agir comunicativo» intersubjectivo que ele fundou a dinâmica daquela sociedade civil que processa politicamente o contrato social. E o interessante é ver que Habermas, para lutar contra as tentativas de desintegração da razão (designadamente pós-modernas) e para dar um suplemento de motivação substancial à interacção comunicativa e argumentativa que anima o debate e a participação democráticas, se socorre do complemento religioso, afirmando que a neutralidade do poder estatal é inconciliável com a generalização política de uma visão do mundo secularística: os cidadãos secularizados não podem, enquanto desempenharem o seu papel de cidadãos do Estado, desconhecer, em linha de princípio, um potencial de verdade nas concepções do mundo religiosas, nem recusar aos próprios cidadãos crentes o direito de contribuírem para as discussões públicas em linguagem religiosa. Bem pelo contrário, uma cultura política liberal pode mesmo «pedir aos cidadãos secularizados para participarem no esforço de tradução de materiais significativos da linguagem religiosa para uma linguagem acessível a todos».

Ambas as visões sublinham uma exigência comum, não valorizada pelas tradições mais formalistas, minimalistas ou fragmentárias: a necessidade de reavaliar o peso da «substantia» na vida individual e colectiva. Ou seja, a necessidade de revalorizar a boa síntese entre forma e substância: a convergência produtiva entre a força das convicções e a harmonia da razão. E é claro que nas questões de fronteira esta convergência não só é possível como é também desejável. As diferentes tradições teóricas em que se moviam Ratzinger e Habermas permitiram-lhes, neste diálogo, unir esforços contra um inimigo comum: os arautos da pura razão instrumental.

Por: João de Almeida Santos

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