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Ratos e Homens

Quando o barco se afunda, os primeiros a fugir são os ratos e os últimos os homens. No naufrágio do Titanic sobreviveram sobretudo mulheres e crianças (mas a história regista casos de homens que se tentaram fazer passar por mulheres para embarcar nos salva-vidas). Há tragédias que resvalam para o caos e em que alguns se procuram valer da força, ou de qualquer forma de batota, para sobressair sobre os outros. É aqui que a comunidade se destrói e a coesão social quebra. O sofrimento da maioria é ridicularizado pelos truques dos que fogem ao sofrimento.

É sobretudo isto que me incomoda no triste caso da batota madeirense. A Madeira tem um rendimento per capita equivalente a 97% da média europeia, muito superior por isso à média nacional. De facto, o PIB per capita madeirense é 123% da média nacional. Isto foi conseguido à custa dos privilégios que lhes foram concedidos – e também dos que conquistaram. O efeito geral destas políticas, no deve-e-haver das contas gerais, é que houve quem pagasse muito mais e recebesse muito menos do que os madeirenses. Outra constatação é que, atendendo à evidência básica da escassez dos recursos nacionais, é que estes têm sido distribuídos de forma favorável aos madeirenses em prejuízo, por exemplo, dos habitantes da Beira Interior Norte. Isto é: para serem possíveis as auto-estradas e os túneis na Madeira foi preciso nós, na Beira Interior Norte, renunciarmos ao Túnel da Serra da Estrela. O tal que iria aproximar decisivamente a Covilhã de Coimbra e do litoral, o túnel que iria revalorizar a Serra da Estrela e toda a “Corda da Serra”. Recordo aqui que nós, na “Corda da Serra”, temos um PIB per capita que ronda metade do madeirense.

Quando se tornou evidente que a actual crise iria obrigar a sacrifícios para todos, lembraram-se de nós, na Beira Interior. É por isso que vamos começar a pagar portagens na A23, na A24 e na A25. Pouco importou ao governo se essas portagens ameaçam levar à falência muitas das já fragilizadas empresas da região. Compreendemos todos, em geral, essa necessidade – apesar de termos um PIB per capita que ronda metade do madeirense e na Madeira se não pagarem nem estarem previstas portagens. Fomos solidários e contribuímos no possível, mesmo que a nossa mísera contribuição implique mais pobreza, despedimentos e falências. Portámo-nos como homens.

Mas há os ratos. Os que recebem mais do que os outros e querem mais ainda, os que recusam sacrifícios, os que acham que as dívidas não são para se pagar e é sempre possível pedir mais algum dinheiro emprestado para os luxos quando os outros já não têm de comer – sempre partindo do princípio que serão estes a receber a factura.

Isto, que Alberto João Jardim tem feito, é de uma baixeza moral inaudita. Merece o desprezo que merecem os ratos e o seu egoísmo e mostra que numa das maiores crises da nossa história há quem, sem vestígio de vergonha, espezinhe os outros para chegar mais depressa à comida. (Registo com desgosto que o Partido Comunista acaba de declarar ser contra o aumento de impostos na Madeira. Quem deve então, e como, pagar as dívidas escondidas do arquipélago? Nós aqui, na Beira Interior?)

Por: António Ferreira

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