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Quem é que está interessado em ler Shakespeare?

Numa cidade de longos e frios invernos, nos tempos em que não havia internet, viver a adolescência significava um desafio à criatividade. Tinham acabado de decidir que a escolaridade devia ser, obrigatoriamente, mais comprida. Como se isso não bastasse, para encher as grandes escolas da Guarda, ainda vieram os retornados das ex-colónias com a filharada toda atrás a sobrelotá-las. Por mim, achei fantástica essa superpovoação escolar que só me permitia ter aulas durante as manhãs, deixando-me as tardes todas para o que me desse na gana.

Às vezes, raramente, tinha preguiça de sair de casa e agarrava um livro, criteriosamente, escolhido pela dimensão da lombada. Pensava eu que quanto mais páginas tivesse mais importante seria. Importante, não interessante, ou divertido, porque por essas alturas enfermei de alguma megalomania intelectual de que até hoje revelo algumas sequelas.

Ora, tanta importância tendia a aborrecer-me e, das duas, uma, ou decidia passar as tardes no Monteneve, ou decidia passar as tardes no bar do Hotel. Às vezes dividia-as ao meio, metade num lado, metade no outro. Gostava de me sentar na mesa dos mais velhos, dos que transportavam, intelectualmente, jornais e livros nos bolsos e depois conversavam todo o tempo sobre os que não traziam. Sendo eu de nunca me ficar atrás, já percebem porque é que escolhia as leituras pelo tamanho da lombada ao ponto de ler a “Riqueza das Nações” só para, julgava eu, embasbacar os interlocutores de café. Lá para o meio do segundo volume já debitava Adam Smith – se as taxas forem mais altas sobre o transporte de bens de luxo, os ricos contribuem, de uma maneira fácil, em benefício dos pobres – qual guru da política económica.

Só que, já se sabe, nestas coisas de competições ad hoc há sempre quem emerja, desempenadamente, com citações socialmente mais impressionantes só por serem noutra língua: “To be or not to be”… Quê! Pensei, que raio é que isto quer dizer e quem será que escreveu? Nem de propósito, à noite a RTP respondeu-me, parece que tinha sido um tal de Hamlet, criado por um tal de Shakespeare. Mas de onde é que teria aparecido este Shakespeare?

Lá em casa havia uma espécie de enciclopédia, não era das a sério, era tipo contrafação, mas ainda assim lá tinha a entrada do tal Shakespeare: ladrão de coelhos que teve de ir tomar conta dos cavalos dos espectadores de um teatro, noutra cidade, para não ser preso… Ah! Até hoje, sempre que alguém me vem com o “to be or not to be”, nem que seja no Facebook, concluo logo: parolo!

Quem é que lê o que um caçador, fortuito, de coelhos e tratador de cavalos escreveu?

Por: Fidélia Pissarra

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