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Que Natal tão Feliz!

Conto

Não tencionava ir agora até minha aldeia serrana, mas as circunstâncias constrangeram-me a ir pernoitar em meu casarão, construído nos fins do século XIX, frio, extremamente frio: não só porque é Inverno e não mandei lá acender lume, mas porque é uma casa desabitada, porque ali, como dizia minha mãe, não há viva alma.

Porém, antes de ira para casa, parando o carro no adro da igreja, nela entrei e fiquei surpreendido ao ver que o presépio já tinha sido colocado no seu lugar habitual, há uns anos a esta parte. Nele havia musgo verdadeiro como outrora, figurinhas, pequenas casas, pastores e reis magos. Mas, como facilmente se compreenderá, minhas atenções, meus olhos foram atraídos por aquela Sagrada Família de que o Menino Jesus era e é o Centro. Ajoelhei-me e senti-me envolvido no pensamento de Deus; quer dizer, não me pus a rezar, no sentido corrente da palavra; pus-me a olhar e a olhar fiquei para Aquele Menino, para o Deus-Menino, sem saber exactamente o que dizer, sem conseguir descrever o que sentia e continuo a sentir!

Oh! Surpresa das surpresas, o Menino Jesus estendeu-me os braços, levantou-os como que a suplicar que o tomasse nos meus… Como é possível? Irresistivelmente, corri para Ele mais rápido que um relâmpago, tão confuso e atrapalhado como jamais me senti em minha vida : o Menino Jesus está em meus braços, sinto-O bem contra meu peito; meus velhos braços tremem. Cantar, rezar, gritar, que atrapalhação a minha! O Menino Jesus dando conta de meu embaraço, com voz muito meiga, diz-me assim:

– Fernando, leva-me contigo! Leva-me para tua casa!

Como é que eu posso levar o Menino Jesus para minha casa? Como é que eu vou cuidar d’Ele, em que cama o vou deitar, no quarto ao lado do meu? Mas o quarto está frio e nem sequer a cama está feita. E quem sou eu para trazer o Menino Jesus comigo? Já não me confesso há não sei quanto tempo e que é que a gente da minha terra vai dizer e fazer quando souberem que o Menino Jesus está em minha casa e não na igreja? E o Menino Jesus repetiu, como que uma ordem:

– Fernando, leva-me contigo para tua casa!

Era como que um incêndio à minha volta. Corri para o carro com o Menino Jesus nos braços; aconcheguei-o num cobertor que ali tinha e assim o trouxe até minha casa, onde chegou já a dormir.

Fui tirar a um baú lençóis e toalhas de linho, cobertores fofos e fiz-lhe uma caminha no quarto ao lado do meu. Ter o Menino Jesus debaixo de minhas telhas? Felizmente, ninguém sabe, se o dissesse ninguém acreditava, mas o certo é que Ele estava ali a dormir com um ar de felicidade que certamente só no céu se poderá contemplar.

Pela manhã, acorda mal cheguei à porta do quarto e, naquele tom de voz que já tenho gravado para sempre na memória, diz-me:

– Fernando, leva-me contigo para Lisboa!

Fiquei a tremer, não de medo, mas de tanta consideração. Porque é que Deus decidiu que hei-de ser eu a levar Seu Filho para Lisboa? Quem sou eu? Acaso minha indignidade está reduzida a tão pouco naquelas contas que só Deus sabe fazer? Entontecido, fiz as malas a correr, envolvi o Menino Jesus em cobertores mais confortáveis que os da véspera, fiz-Lhe uma caminha no assento de trás, sem que ninguém desse conta e pouco depois de pôr o carro a andar, o Menino Jesus adormeceu como se não tivesse dormido e eu, timidamente, olhava-O através do retrovisor… ser chauffeur de Deus!…

Pouco depois de termos passado por Coimbra, uma voz, a voz d’Ele, surpreende-me:

– Vamos por Fátima! E, dizendo isto, levanta-se da cama, não a criancinha que eu ali havia deitado, mas um jovem que só espelhava atracção e bondade. Parei o carro e, num relâmpago, Jesus sentou-se no banco, ao lado do meu; consegui balbuciar:

– Jesus, que quereis de mim?

– Quero ir a Lisboa, ver toda a gente que lá vive, para lhes dizer que os braços que estendi para ti na igreja da tua aldeia os tenho abertos a toda a gente; e que a pobreza, a desordem, a destruição, o ódio, a inveja, a guerra só têm uma causa: os homens esquecem que eu nasci para abrir os braços a todos e que se há tanta fome, tanta pobreza, tanta desordem no mundo é porque os homens se recusam a dar uns aos outros um pouco de carinho e ternura como aqueles que tu me deste.

Pensei para comigo que Deus nem nos pede muito, que Ele me perdoe, mas até nos pede

bem pouco…

Mal chegámos a Fátima e parei o carro, o Jovem Menino Jesus tornou-se outra vez pequenino, tal e qual como estava no presépio, sorriu-me, acenou-me um adeus, voando e dizendo-me:

Obrigado, Fernando, desço aqui; antes de ir até Lisboa, vou visitar minha Mãe, Nossa Senhora de Fátima!

BEM HAJAS, MENINO JESUS !

Fernando Moura, Lisboa

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