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Que a memória não se apague

Entrementes

São já quarenta os anos que me separam daquela data. Naquele dia vinte e cinco de abril saí, como habitualmente de casa para a escola. Frequentava à época a chamada Escola Preparatória General João de Almeida, hoje Escola de Santa Clara. Deslocava-me a pé. Uns bons quatro quilómetros sempre a subir e de livros e almoço às costas que isso de cantinas não era coisa para aqueles tempos. Chovesse, nevasse ou fizesse sol, saíamos, eu e mais uma meia dúzia, por volta das sete e trinta, andarilhos pressurosos que as aulas não esperavam.

Naquele dia estranhei ouvir apenas marchas militares num velho radio de pilhas que, religiosamente, ligava todas as manhãs enquanto engolia à pressa o café matinal. Miúdo de doze anos não prestei demasiada atenção ao facto. Foi só quando cheguei à escola que dei por uma algazarra bem diferente daquela que nós, petizes, fazíamos habitualmente. Desta vez notava-se algo especial. Atarefados, funcionários e professores corriam de um lado para o outro sem tempo a perder. Lembro-me: estava na aula de Português, cujo professor era o Dr. António Saraiva de Melo, quando alguém de quem não me recordo veio informar que não havia aulas, que podíamos ir para casa, que tinha havido uma revolução. Nem tempo houve para perguntar ao professor se isso de revolução seria assim como a repetição de 1385 ou do primeiro de dezembro.

Quarenta anos, quatro décadas passaram já!… Os da minha geração são hoje pais, avós alguns. E tanta História se escreveu entretanto… Passaram os tempos da sofreguidão democrática. Passaram os tempos da intervenção cívica. Passaram os tempos do romantismo de uma democracia imberbe ainda e, talvez por isso, ingénua. Vieram depois tempos atrás de tempos. Vieram coisas com que apenas os utópicos tinham sonhado. Houve sonhos a fazerem-se realidade. Viveram-se tempos de mudanças extremas. O mundo avançou mais rápido do que bola em mão de criança.

E eis-nos hoje aqui. Num tempo novo, sempre renovado. Quarenta anos fizeram a diferença, mas não fizeram a diferença toda. Continuamos a viver num país de desigualdades gritantes. Continuamos a assistir a um país que caminha a duas velocidades. Continuamos a ver aumentar as disparidades entre os muito poucos que têm muito e os muitos que não têm nada. Vemos com preocupação o futuro dos nossos filhos.

Uma coisa fundamental temos, no entanto, que agradecer àqueles que saíram dos quartéis naquele abril e essa é a de podermos, hoje, divergir, criticar, exercer, no fundo, a cidadania democrática que nos proporcionaram. Essa foi uma conquista primordial que importa não só não esquecer, como lembrar aos mais novos que não tiveram o azar de viver o outro tempo.

Daí que não entenda, por extremadas que as posições estejam, a atitude da segunda figura do Estado nas declarações prestadas sobre a participação dos denominados Capitães de Abril nas comemorações da efeméride.

Afinal, ela só está onde está porque existiu um certo abril… Ou, como o povo diz, na sua sabedoria, “há gente com a memória muito curta…”?…

Por: Norberto Gonçalves

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