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Psiquiatria ao domicílio

Todos os meses, uma equipa do Hospital da Guarda leva medicação e afecto aos lugares mais recônditos do distrito

Às 8h30, a carrinha verde escura meteu-se à estrada. O destino desta volta especial são os concelhos de Fornos de Algodres e Aguiar da Beira. Na mala, uma equipa do departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital Sousa Martins leva medicação e afago aos doentes, até aos lugares mais recônditos do distrito. Pelo menos uma vez por mês, os utentes esquecem-se dos seus distúrbios e não se sentem sozinhos. Um enfermeiro, uma assistente social e o motorista aventuram-se por estradas sinuosas e caminhos desconhecidos. Sem fardas e sem descurar a relação terapêutica, acabam por criar laços de amizade.

Desta vez não foi excepção, mas a equipa foi reforçada com três alunas de enfermagem em vez da assistente social, que estava de férias. Pedro Renca é o enfermeiro responsável pelo circuito de Fornos e Aguiar da Beira, desde do princípio do ano que faz, todos os meses, aquela “volta”. Por isso, já conhece os gostos e as “manhas” de todos os pacientes. «Nós vemos logo se andam mais ou menos compensados através da maneira de se vestirem, da postura ou até pelo olhar», refere o jovem enfermeiro, de 27 anos, que faz o chamado serviço comunitário praticamente desde que trabalha naquele departamento, há cerca de dois anos e meio. Na primeira paragem não havia certezas do endereço, porque «foi incluindo recentemente no trajecto», justifica o enfermeiro. Já no edifício certo, um jovem abriu a porta e cumprimentou o enfermeiro, como “velhos” amigos. Ao contrário de outros casos, Filipe (nome fictício), também de 27 anos, pertence a uma família de classe média, que o apoia. Na retaguarda estava o seu gato, cujo nome alemão só ele sabe pronunciar. «Todos os doentes são tratados pelo nome», adianta Pedro Renca, acrescentando que este relacionamento «mais íntimo é importante, até para a terapêutica».

Depois de tomar a medicação injectável, «os chamados neurolépticos de acção prolongada», e de algumas perguntas da “praxe”, os técnicos de saúde despedem-se até 18 de Agosto. «Há cada vez mais jovens», constata Pedro Renca e, «por vezes, não estão empregados, acabando por se meter no álcool», como é o caso de outro utente por onde passaram. Entretanto já visitaram mais dois, um dos quais ficou chateado porque não houve tempo para tomar um “cafézinho”, enquanto outra paciente estava aborrecida por causa do ligeiro atraso. «A maioria deles desenvolvem delírios e constroem histórias que não são reais», indica o enfermeiro, já habituado às ruelas e lugarejos, alguns sem números ou portas. Nas aldeias a viatura não passa despercebida aos populares, apesar de não irem fardados, todos sabem que é uma “brigada” do Hospital. E os doentes acabam por ser estigmatizados ou rotulados por algumas mentes mais retrógradas, que espreitam na esquina da rua. «Habitualmente venho de sapatilhas, porque uma vez já tive que andar a correr atrás de um doente», revela o jovem enfermeiro.

Laços de afectos e terapia

Já em Forninhos, a D. Conceição (nome fictício) aguardava com alguma impaciência pela chegada da carrinha porque já estava atrasada para as lides do campo. Depois de alguns acertos na medicação que toma diariamente, pediu a marcação de uma consulta de rotina. «Também servimos de elo de ligação ao Hospital», justifica Pedro Renca. De seguida, a D. Conceição apetrechou-se com as suas botas de borracha e pegou na enxada. Ao todo o trajecto, vulgarmente conhecido por “volta”, incluía a visita domiciliária a 19 doentes. A maioria deles vivem na própria casa, mas outros vivem em instituições, como é o caso dos utentes do Lar de Dornelas. Um dos quais tinha acabado de aparecer de uma das suas fugas matinais. «Ainda nem tomou o pequeno-almoço», confessa uma das empregadas, olhando para o relógio que marca as 12 horas. Por seu lado, as três alunas de enfermagem administraram a medicação e espalharam benevolência. Para a Célia, esta foi a segunda vez, por isso estava um pouco mais à vontade, mas Maria e Helena “estrearam-se” no serviço comunitário. No final do dia, a equipa regressou à Guarda, fatigada, mas com a sensação do dever cumprido.

“A menina dos olhos” da Psiquiatria

Actualmente, estão integrados no Serviço Comunitário 227 doentes

O departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital de Sousa Martins (HSM), na Guarda, presta Serviço Comunitário desde 1998. «É uma valência do serviço, são visitas domiciliárias, usualmente mensais, mas também há um trajecto que justifica uma regularidade de três em três semanas, por causa da medicação dos doentes», explica Pissarra da Costa, director do serviço.

O programa de prestação de cuidados é levado a cabo por uma equipa multidisciplinar, constituído por um enfermeiro e uma técnica de serviço social. Por outro lado, os doentes do distrito são agrupados em dez percursos geográficos, com nove a vinte doentes por “volta”. Actualmente, estão integrado neste serviço 227 doentes distribuídos pelos 14 concelhos, «número que tem vindo a aumentar», revela. Os registos da evolução datam de 1992, quando se realizavam 920 visitas domiciliárias, em 1995, registaram-se 1.100 e em 2003 ultrapassam as duas mil visitas. Já no ano passado foram efectuadas 2.296 deslocações e foram percorridos mais de 30 mil quilómetros.

A maioria são doentes mentais “crónicos”, «com psicoses de evolução prolongada», refere o médico, acrescentando que «se trata de uma população vulnerável a todos os níveis». O serviço comunitário pretende promover a integração do doente no seu meio habitual. Além que permite «vigiar a evolução clínica, de forma a detectar precocemente sinais de descompensação ou outras situações de risco», indica.

Por isso, nestes doentes as taxas de internamento «são inferiores a dez por cento», sublinha o psiquiatra. No fundo, este serviço ajuda a combater o estigma social, para além de detectar e orientar situações de grande carência social-económica, promovendo apoio social. «Através deste trabalho também fazemos psicopedagogia, porque falamos com os familiares, que por vezes são os primeiros a rejeitar a doença», sublinha Pissarra da Costa. Desta forma, o doente «não é descontextualizado, nem institucionalizado», conclui. Para além do Hospital da Guarda, só o Hospital de Viseu dispõe também desta valência, na região Centro. O serviço comunitário «é a “menina dos olhos” do departamento», corrobora Davide Coutinho, enfermeiro Chefe do Serviço de Psiquiatria do HSM. No final do ano, «acabamos por criar um laço de afectividade, para além da terapia», realça. Este serviço «permite ver a pessoa para além da doença», diz Davide Coutinho, que recorda uma vez, que foi num carro particular e “disfarçou-se” de homem da electricidade para conseguir visitar um doente que se fechava dentro de casa.

Patrícia Correia

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