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1. Foi há pouco anunciada a candidatura de uma lista encabeçada por Virgílio Bento à Câmara da Guarda. Já aqui comentei o assunto, quando só ainda havia uma vaga de fundo pressionando Bento a avançar. Os pressupostos do que disse na altura mantêm-se de pedra e cal. Só que agora trabalhados pelo crivo da nova realidade. Vamos então por partes. 1º Qual a génese desta candidatura? A derrota sofrida por Bento e Rodrigues nos processos de nomeação dos candidatos nos respectivos partidos. E isso justifica, só por si, avançar autonomamente? Como é sabido, enquanto Bento perdeu uma eleição concelhia que nunca aceitou, Rodrigues foi preterido pela estrutura distrital, depois de um longo processo muito pouco transparente. Com a agravante de que não se demitiu do executivo camarário quando isso era um imperativo básico. Mas se ambos sempre actuaram politicamente no âmbito dos seus partidos, não conheciam os mecanismos dúbios que estes albergam? Não conheciam os alçapões da ingratidão que por lá abundam? Para quê, então, criar um palco destinado sobretudo a esgrimir desagravos pessoais? 2º Qual a razão de ser da lista? A sua composição e apoiantes, pelo seu percurso e funções, fornecem a resposta. Ou seja, temos um conjunto de figuras preteridas pelos aparelhos partidários, ou que, vivendo na obscuridade à sombra desses aparelhos, resolveram fazer uma prova de vida, ou que simplesmente vêm a sua sobrevivência política em perigo. Estão neste caso os autarcas das juntas, apoiantes do momento e caciques de sempre. Personalidades realmente independentes e de reconhecido mérito cívico, cultural ou empresarial, simplesmente não existem numa lista “independente”. Ou seja, sob a aparência de uma candidatura “autónoma” e “abrangente”, esconde-se uma luta desesperada pela sobrevivência. O que explica que, nesta lista, só aparentemente existem duas uniões contra natura: a) disfuncionalidade política, mas essa pouco interessa, pois a necessidade fala mais alto; b) A coexistência de barões locais com dinossauros locais. Ou seja, pessoal político relativamente alheio ao aparelho e gente que é a face mais atávica e imobilista desse mesmo aparelho. Mas também neste caso a aflição e um protagonismo efémero podem dar as mãos. 3º O que vem esta candidatura trazer de novo? Ouvidas as linhas genéricas do programa proposto, não deixo de concordar com muitas delas. Mas que valor têm as declarações de Bento que as anunciam? Simples intenções? Mais língua de pau? Que estudos fidedignos podem ancorar propostas sérias, sustentadas e exequíveis? Uma lista “independente” não deveria começar por escutar de fora para dentro? Conclusão óbvia: o verdadeiro significado do aparecimento desta candidatura é a manutenção da “situação”. Ou seja, do velhinho status quo socialista, agora temperado com alguns notáveis trânsfugas do PSD. E tão só isso.

2. O último número da revista “Ler” inclui duas entrevistas notáveis, embora não exactamente pelas mesmas razões. Os entrevistados são Gonçalo Ribeiro Teles e Rentes de Carvalho. O primeiro dispensa apresentações. O segundo é o “nosso” embaixador literário na Holanda desde há 60 anos. E também, ao que parece, autor atingido pelo síndrome de Jorge de Sena, ou seja, razoavelmente ignorado pela Pátria. Com as devidas proporções é claro. Tão impertinente olvido foi colmatado, há pouco, com a publicação da sua obra completa, na Quetzal. Mas não é a análise da sua obra, até porque não a conheço, que está aqui em causa. Na sua entrevista, Ribeiro Teles é igual a si próprio. Divaga mais do que responde. Circula livremente pelos seus temas favoritos – ordenamento do território, urbanismo, ambiente – como Tristram Shandy pela história do seu nascimento. Ou seja, para ele é tão importante o tamanho das janelas nas cidades do sul como a destruição do mundo rural, a existência de orlas arbustivas nas florestas como a perda da paisagem ou a inspiração nos Livros de Horas medievais. O arquitecto dilui-se no mundo e é já parte dele. Rentes de Carvalho, pelo contrário, relata um conjunto de apreciações e histórias, do mundo literário, político e diplomático, sempre em função de si próprio. Onde ele é invariavelmente o centro da narrativa. Onde a realidade, embora singular, está lá como simples cenário para o servir. A diferente formação académica, visibilidade pública ou percursos de vida não explicam, por si só, tamanha disparidade comunicacional. A reposta pode encontrar-se num axioma tão simples quanto este: o que sabemos fazer por nós poderá sê-lo principalmente pelos outros?

Por: António Godinho Gil

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