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Portugal não devia existir

Viajar por Portugal é uma actividade perigosa para os meus nervos. E, reparem, eu não sou um tipo enervadiço. Aliás, gosto muito de ostentar a minha calma sub-alentejana. Mas, então, qual é a coisa que consegue transformar um pacífico sub-alentejano num praguejador napolitano? A resposta é sempre a mesma, meus amigos: o desprezo que os portugueses têm por Portugal.

Ao andar pelas estradas do país, vemos esta espécie de masoquismo colectivo por todo o lado: as bermas estão sempre cheias de entulho; as florestas e baldios estão sempre decorados com plásticos e papéis. No verão, a coisa fica ainda mais enervante, porque é visível que ninguém limpa o perímetro de segurança (50 metros) em redor de casas e povoações. Nesta época dos incêndios, o masoquismo colectivo passa a ser masoquismo puro e duro: ali estão vilas inteiras rodeadas por amazónias sequíssimas. E ninguém limpa aquele mato assassino.

Peço desculpa pela franqueza, mas as pessoas que sujam as florestas e que não cortam as matas são as mesmas que depois aparecem, coitadinhas, na TV a perguntar: “Onde estão os bombeiros?”. Se estivesse viva, a minha querida avó diria, com aquele laconismo alentejano, que esta gente só se lembra de Santa Bárbara quando troveja.

Mas sabem o que é ainda mais desconcertante? Esta imundice pública não condiz com o asseio privado dos portugueses. Sim, é isso mesmo. Todas as grandes raças são feitas de contradições que desorientam a lógica. E esta é uma das nossas contradições: o português que não limpa o baldio perigoso é o mesmo português que transforma a sua casa num museu imaculado; o português que suja a rua é o mesmo português que toma banho três vezes por dia.

Sim, é verdade, o “bife” civilizado fica incomodado com as nossas ruas sujas, mas também é verdade que esse mesmo “bife” fica surpreendido com o asseio doméstico dos portugueses (uma namorada francesa indagava-me sempre com um lacónico “ó Henri, porquê tanto banho?”).

No interior das quatro paredes, o português é o ser mais asseado da OCDE. Dentro de casa, o “tuga” dá lições de “ordnung” a qualquer governanta alemã. Mas, claro, o problema é que esta “ordnung” doméstica nunca se estende ao espaço público. Uma vez, na Baviera, vi uma mulher a limpar a sua rua (o tal perímetro de 50 metros) com uma daquelas vassourinhas. Ou seja, aquele mulherão teutónico estava de joelhos a limpar a via pública, porque sentia (e sente) a via pública como algo “seu”.

Ora, em Portugal, esta cena é uma impossibilidade ontológica. Os portugueses guardam o seu asseio apenas para a sala de estar. Os “tugas” são, ao mesmo tempo, gatos asseados (dentro de casa) e hienas imundas (fora de casa). São óptimos pais ou maridos, mas são péssimos cidadãos e vizinhos ausentes. Os “tugas” têm civismo, mas só dentro de casa.

Quando inventou o Quinto Império, António Vieira esqueceu-se de dizer que Portugal está a mais na portugalidade. Portugal não devia existir, meus amigos. Os portugueses são uma grande raça, sim senhor, mas essa grandeza só se vê dentro de quatro paredes. Portugal acaba por ser um empecilho público para a grandeza privada dos portugueses. Este povo só devia existir enquanto diáspora. Aliás, o verdadeiro Quinto Império devia ser uma diáspora portuguesa num mundo sem Portugal. A julgar pela forma como o sujam, os portugueses não precisam mesmo do seu Israel.

Por: Henrique Raposo

Comentários dos nossos leitores
al cardoso alcard8@gmail.com
Comentário:
Nao poderia nunca estar mais de acordo com este artigo! Parabens ao escritor. Um abraco dalgodrense da diaspora.
 

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