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Port-au-Prince

Alguém explique ao Rodrigo Guedes de Carvalho que Port-au-Prince, em francês, se pronuncia em português simplesmente “pór ô prance”, e que este último “ance” (lido como se lê em português) nada tem a ver com o “ance” de, por exemplo, France (lido em francês). É um detalhe sem muito interesse, que demonstra quanto muito o pouco cuidado tido em trabalhos muito bem remunerados, mas deve ser assinalado.

Estávamos nós a discutir o próximo orçamento, procurando manter os direitos de hoje sem hipotecar demasiado o futuro, e ninguém sabe muito bem qual a receita, quando ocorreu a tragédia no Haiti.

Presenciamos diariamente o espectáculo de um país e de um Estado a decomporem-se, com as autoridades a sumirem-se na multidão, ou a fugirem para o estrangeiro. As lojas são objecto de pilhagem, não há empregos, nem casas, nem infra-estruturas utilizáveis. O pouco que tinha sido construído ruiu, ou está inaproveitável, ou não há quem saiba aproveitá-lo. O governo deixou de existir, ou fugiu. O gigantesco e megalómano, e de péssimo gosto, palácio presidencial, ignominioso símbolo de um estado corrupto, está destruído. O presidente está invisível, como os seus ministros, como a polícia, como as estruturas básicas daquilo a que se convencionou chamar “Estado” e que, por corrupto ou ineficiente que seja, alberga um mínimo de segurança e conforto. O que vemos são milhões de pessoas, totalmente desorganizadas, a tentar sobreviver mais um dia. Sabemos que por detrás deles não existe uma economia a produzir bens essenciais e que estes, mesmo que existissem, não teriam vias de escoamento, como não existiria uma organização que os fizesse chegar a quem precisa. De um dia para o outro, desapareceram as poucas empresas e os poucos postos de trabalho que existiam, como desapareceu o próprio país.

Tudo isto foi muito mau, mas antes já era horrível. O Haiti era já um dos países mais pobres, corruptos e inviáveis do Mundo. Como ideologia dominante tinha o conjunto das suas muitas superstições e como sustentáculo económico os canais da corrupção. Milhões dos seus cidadãos viviam de expedientes e do que a terra ia dando, e ia dando cada vez menos, tantas as ofensas ambientais a que a iam submetendo – e quem não acredite, que veja pelo Google Earth a diferença com a vizinha República Dominicana – o Haiti desertificado, a República Dominicana coberta com uma luxuriante floresta tropical. É como se uma parte dessa ilha tivesse sucedido e a outra cometido todos os erros possíveis – incluindo aqueles que destruíram a antiga civilização da Ilha de Páscoa.

Vendo isto, o nosso orçamento já não parece ser um problema tão grande. De uma forma ou outra, vão todos (refiro-me aos partidos), arranjar maneira de adiar por mais um ano o impacto dos maiores problemas. Arranjarão maneira, também, de adiar uma solução para eles, hábito muito português de muitos séculos.

É verdade que nunca tivemos problemas tão grandes como os que tinha o Haiti, de Doc e Baby Doc Duvalier, é até verdade que tivemos um terramoto maior que o deles. É verdade também que, cada vez que os problemas se avolumam, os nossos governantes fogem.

Por: António Ferreira

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