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Porque é tão difícil encontrar quem concorde com Kristeva, a Júlia?

Enquanto deixo que o olhar vagueie pelo esbranquiçado, com que os dois graus negativos pintam a paisagem, vou ouvindo alguém que se serve da rádio para nos dar conta do apoio que presta aos sem-abrigo. Alguém que, à pergunta do jornalista sobre quais as maiores dificuldades que costuma enfrentar neste apoio, nos elucida sobre o problema com que se depara sempre que tenta mudar a “mentalidade” e atitude de um sem-abrigo para que deixe de o ser.

De imediato me ocorre a imagem de alguém, muito empenhado e prestável, a tentar apoiar alguém que, ao que deduzo da conversa radiofónica, nem sequer está interessado em mudar de vida. Esforço-me, sem sucesso algum, já se vê, por descortinar um, um só, motivo capaz de convencer qualquer desabrigado a mudar de vida. Entre uma e outra ideia peregrina ocorre-me que, provavelmente, quem vive na rua talvez nem saiba o que significa vida para os outros e não entenda, por aí além, o que pretendem que mude.

Acabo a viagem a tapar as orelhas, no curto percurso entre o carro e o edifício onde me abrigo, e dá-me para pensar em como faria se tivesse que ficar sentada à espera das 19 horas, do dia 5, (deve ter sido a hora definida, por alguém que sabe da coisa, a que o frio, muito, me atingiria) para poder aconchegar-me na nave de um qualquer pavilhão, ou numa estação de metro. Provavelmente, faria o mesmo que faria quando ficasse sentada à espera da meia-noite, qual Cinderela de um limbo, à espera de uma sopa de nabo que alguém, que gosta muito de nabo, altruisticamente, cozinhara para mim que detesto nabo na sopa: nada.

Tendo eu aversão a “nadas”, só por causa desse, haveria de mudar de “mentalidade” e atitude, se fosse desabrigada. Em vez de agradecer a boa da sopa e pernoitar na estação de metro, haveria de entornar a dita na sarjeta e dormir na soleira de todas as portas…

Mas, se assim procedesse, que poderia eu ganhar? A “mentalidade” de quem me ofereceria apoio, enquanto me ia culpando por não ter abrigo, comida e agasalho? A atitude de quem se disponibilizaria para me fazer sopa com nabo só para acalmar a consciência da hora de dormir? O apoio de quem quer que eu vá ao seu encontro, sem nunca me dizer o caminho, nem dar dinheiro para o táxi?

Não. Se fosse uma sem-abrigo, de certeza, que preferiria que os outros, os abrigados, não permitissem, que eu o fosse. Que proibissem a impossibilidade de escolher entre a cama, pessoal e intransmissível, e a soleira da porta dos outros, entre um pastel de natal e um bolo de arroz. Porque, ainda que disfuncional, na minha “mentalidade” e atitude de sem-abrigo, continuaria a sentir o mesmo frio, a mesma fome, às mesmas horas, de todas as pessoas.

Por: Fidélia Pissarra

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