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Pornografia

Entrementes

“Se a vida se comprasse

Deste mundo o que seria?

O rico comprava a vida

Só o pobre é que morria.”

Por motivos pessoais fiz, na semana passada, um périplo pelos lares (ou, mais pomposamente, casas de repouso) da Guarda e arredores. Num deles ouvi da boca de quem passou uma vida inteira sofrida, quantas vezes à míngua de pão na mesa, a quadra que transcrevi acima. Uma quadra saída do saber de experiência feito e que, em si mesma, encerra todo um compêndio de filosofia.

Porém, o que mais me chamou a atenção nem foi a quadra em si mas a forma como foi dita. Assim numa mescla entre o desencanto e a revolta de quem sabe que, por um lado, está no ocaso da vida e, por outro, reconhece que os novos tempos não prometem melhorias sensíveis no nível de vida dos mais desfavorecidos. Isto, mesmo não sabendo aquela idosa, carregada de fundas rugas, que um dos indicadores para aferir da evolução de uma sociedade é precisamente o da distribuição de riqueza. Isto, mesmo não sabendo que, a cada dia que passa, maiores são as discrepâncias entre os poucos que muito têm e os muitos que nada, ou quase nada, possuem.

Vem isto a propósito da divulgação da lista dos mais ricos em Portugal, que, como se sabe, é um país abundante de recursos e de riquezas quase inesgotáveis… Ano após ano lá somos confrontados com estas listas que ora nos remetem para Belmiros de Azevedo, ora nos apontam os Amorins ou, como é o caso este ano, os Alexandre Soares dos Santos, patrão todo-poderoso da empresa que, entre outros, gere esses verdadeiros arautos da defesa dos direitos dos trabalhadores que são os supermercados Pingo Doce.

Pois bem, o coitado do senhor conseguiu, apesar de fazer descontos de meio por meio, alcandorar-se ao lugar mais alto do pódio… Assim com uns dinheiritos de nada… Uns míseros dois mil milhões de euros e mais uns trocos para a bica… Coisa pouca já se vê num país em que o ordenado mínimo não chega aos sumptuosos quinhentos…

Vá lá saber-se porquê, enquanto escrevia isto, dei por mim a pensar em pornografia. Sim, porque nesta espécie de sociedade democrática e de democrática igualdade de oportunidades e de acesso à saúde, à educação… haver nababos que assim vivem enquanto os muitos outros se esmifram em milagres matemáticos para conseguirem multiplicar o pão à mesa é bem mais pornográfico que aqueles filmes que se catalogam como tal…

Preocupado com a situação, e em pleno período de férias, quando esses malandros dos trabalhadores arranjam uns trocos para uma semanita a banhos, o Governo, sempre atento quando se trata de inventar a milionésima forma de esmifrar os bolsos vazios do Zé, decide publicar uma nova lei do trabalho. E quem defende essa lei? Os trabalhadores?… Pois!… Agilizar despedimentos; horas de trabalho extra mais baratas; banco de horas; despedimentos por inadaptação ao posto de trabalho e sei lá que mais… Sim, que os patrões, coitados, estão à míngua e ainda hão-de vir dizer, como o outro, que o que ganham não lhes chega ao fim do mês…

Bom, se isto não é pornografia da melhor então não sei o que será isso do hard-core…

Não fosse esta uma crónica apenas escrita, houvesse oportunidade de lhe adicionar uma imagem e essa seria a do célebre manguito…

Ah, saudoso Bordalo Pinheiro!… Atual. Ontem como hoje…

Por: Norberto Gonçalves

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