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Poder na rua

observatório de ornitorrincos

A rua árabe incendiou-se com doze cartoons de Maomé publicados num jornal dinamarquês. Mais concretamente, foram as embaixadas dinamarquesas nas ruas árabes que arderam. A rua, que já de si é perigosa quando o poder lá cai, torna-se implacável quando é também árabe. Dá gosto ver, em países onde não há a mínima liberdade de expressão e nunca existem protestos de rua de nenhuma natureza, manifestações absolutamente espontâneas contra cartoons publicados num jornal dinamarquês que ninguém lê. Aqui se vê a grandeza de alma destes povos. Normalmente preocupados apenas com a vidinha, sem preocupações com as mulheres sem nenhuns direitos cívicos ou com o tio que desapareceu depois de ter sido mais impertinente com o polícia, sem notícias ou jornais independentes, assistindo a uma outra mutilação por pequenos delitos e a um apedrejamento até à morte aqui ou acolá, esta gente de princípios morais inabaláveis deixa a modorra do quotidiano e salta para a rua para defender a honra destroçada de Maomé numa dúzia de desenhos.

Felizmente há em Portugal e na Europa quem os compreenda. A esquerda multicultural entende a indignação e pede respeito pelas barbas do profeta. Parece que incendiar embaixadas, incitar ao assassínio e matar pessoas pode ser entendido como forma legítima de indignação. Admiro a coragem e a coerência desta gente. A esquerda respeitou sempre os símbolos religiosos do cristianismo e do judaísmo e nunca os ridicularizou. Mais, protestou sempre que estes foram de alguma forma caricaturados. As pessoas que agora compreendem os muçulmanos e criticam os cartoonistas dinamarqueses talvez tenham sido as mesmas que desprezaram o desenho de António onde o Papa aparecia com um preservativo no nariz ou Saramago e o seu Evangelho Segundo Jesus Cristo. E refiro António e Saramago porque ambos sofreram terríveis represálias da “rua cristã”. Contra o desenho correu um abaixo-assinado e o livro não pôde participar num prémio literário europeu. O que são umas embaixadas incendiadas e um ou outro morto comparado com isto? Saramago e António foram duas vítimas da insidiosa censura do índex cristão. Os desenhadores dinamarqueses são carrascos cruéis de uma fé legítima. Não há comparação possível.

Por causa disso, o governo dinamarquês pediu desculpas aos muçulmanos. Desculpou-se e justificou que na Dinamarca o governo não controla os jornais. Como é isso possível numa civilização que se julga avançada? A rua árabe queima embaixadas com toda a razão. Se um Estado não tem mão nas opiniões dos seus habitantes, extermine-se o país. O executivo nórdico pediu também desculpas pela localização geográfica, que impediu as tropas nazis de chegar a França com maior rapidez, e pela vitória da sua selecção no Europeu de futebol de 1992, que teve o descaramento de ganhar à Alemanha na final depois de ter sido convidada especial para fazer apenas uns jogos, no que constituiu uma enorme humilhação para os jogadores germânicos. Além disso, foi o único país a votar contra o Tratado de Maastricht e, para cúmulo, tem uma língua imperceptível. O governo dinamarquês assegurou aos líderes muçulmanos que levará a cabo um referendo sobre a existência da Dinamarca. Os islâmicos sentiram-se ofendidos por perceberem que os europeus têm muita conversa fiada, mas no fim vêm sempre com esta viscosa mania democrática de perguntar coisas às populações.

Eu estou com a rua árabe. Acho a liberdade de expressão uma coisa perigosíssima. Basta ver que é à luz desse princípio nauseabundo que todas as semanas este jornal publica as minhas opiniões, mesmo contra a minha vontade. Para piorar a situação, já confessei várias vezes nesta coluna a minha condição de agnóstico. Não acredito em Deus nem em nenhum dos seus profetas anunciadores. Admito que isto seja ofensivo para todas as religiões. Aceito, por isso, que em nome da indignação dos que têm fé queimem a minha casa, destruam o meu carro e me partam a cara à estalada. Eu mereço.

Por: Nuno Amaral Jerónimo

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