1.O Plano Nacional de Leitura atingiu um ponto de aceitação próprio das coisas que não se discutem e por isso carecem de senso crítico nos momentos em que é necessário tomar decisões. É pois com uma dose enorme de otimismo que se inicia a etapa PNL 2027, com a ideia de agarrar os que já não leem, não abandonando aqueles em que a capacidade de ler está a crescer e ainda há vontade de ler mais. Nas entrelinhas do documento não aparecem vislumbradas as dificuldades: por exemplo, a ideia de que os três grandes objetivos da leitura estão atualmente saqueados por media fora da leitura tradicional. O ler para chegar às histórias que fazem sentido para nós e de que precisamos para compreender o mundo está apanhado pelo cinema e pelas séries de TV. O ler para comunicar está baseado hoje em dia na comunicação imediata via dispositivos móveis. O ler para buscar informação está completamente dominado pelos motores de busca na net. Que lugar sobra assim para a leitura com tempo, para a leitura com recuo e reflexão que o objeto “livro” proporciona? A fase PNL 2027 será sempre uma operação ingrata de luta pela leitura, em que o livro está em plano inclinado a escorregar inexoravelmente, muito, bastante ou alguma coisa.
Inevitável será assim que em algum momento a perspetiva da centralidade do livro e da leitura mude e que se olhe a leitura pelo lado dos que a ela acedem pela via da Internet, com todos os sobressaltos que isso causará, olhando os leitores tradicionais como um resquício do antigamente. Não duvidamos que assistimos ao ocaso da leitura extensiva, lenta e metódica tal como a conhecemos até há poucos anos. Sintoma do desvanecer desta leitura é a desvalorização dos livros de leitura obrigatória no ensino, enganando o professor com leituras de resumos e filmes ou a queda do livro como prenda, coisa que se dá para agradar. Pelos contactos que vamos fazendo, a partir dos 12-13 anos só cerca de um quarto dos alunos leem as (poucas) obras de leitura integral exigidas. Por vontade própria muito poucos se aventuram por prazer a uma obra de mais de cem páginas. Uma outra questão é o que será o homem do futuro com a leitura da Internet como central: podemos já adivinhá-lo hoje nos universitários e diplomados que temos?
2. Às vezes há livros que nos consolam e nos deixam satisfeitos por um sentimento de pertença. Pertença, neste caso, a uma região, que tem as suas características próprias (distribuídas entre debilidades e qualidades) e que nós gostamos de desenhar no mapa. Dois livros que tive de ler por obrigação acabaram por ficar na minha devoção por descobrir neles as marcas identitárias daqui. As marcas estão ferradas nas pessoas que ali são personagens e fazem o papel de beirões (da Beira Alta). Ou de transmontanos, que é quase a mesma coisa (também vivemos cá para trás dos montes). Quase como se essas personagens fossem mais beirãs do que as pessoas reais e interiorizassem o arquétipo do que consideramos nosso.
E que personagens são essas em “Uma costela da Beira Alta” e “Os Sonhadores”? São pessoas divididas entre a solidão da vila ou da aldeia e os gestos corajosos, entre a dignidade e a loucura, entre a vontade de partir e a força das raízes. Às vezes têm de escolher e muitas vezes escolhem mal. Não são pessoas que nós não possamos reconhecer em outras regiões mas parece que nestas narrativas a leitura nos leva a procurar o fundo das pessoas que nos rodeiam e o fundo de nós também.
Uma das histórias mais bonitas de “Uma costela da Beira Alta” é a de um agricultor da Ponte do Abade que tinha o hábito de velar os mortos durante longas noites, quando o hábito era que os mortos não fossem em nenhum momento “abandonados” no seu caixão pela família naquelas horas/ dias até ao seu enterramento. Ele dava conversa às famílias, desenterrava o lado bom do morto, desviava a atenção do caixão, em suma, ajudava a passar o tempo. Era já quase uma instituição da aldeia mas vivia sozinho até que um dia se deixou cair no goto de uma viúva que ali velava o seu morto. E o resto não conto…
Lembro-me de que, quando me candidatei a estágio profissional de volta à minha região (há 35 anos), coloquei no formulário de candidatura, para além das mais próximas da Guarda, todas as escolas que tinham estágio dentro da Beira Alta e de Trás-os-Montes. Naquela altura a imagem que tinha desta dupla região aparecia mitificada pelos livros de Torga e Aquilino. Ainda hoje, quando faço viagens por aqui, são imagens de gente sublime, dura, digna e verdadeira, ora no registo decidido ora no melancólico, que eu encontro ou procuro encontrar nos mais diversos locais.
(Uma costela da Beira Alta, de Daniel Joana, de 2012; Os sonhadores, de António Mota, de 1991)
Por: Joaquim Igreja