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Pluvioso

1. Sou espectador assíduo do programa Ponto/Contraponto, na SIC Notícias. Um emissão onde Pacheco Pereira tem oportunidade de se debruçar em pormenor sobre vários exemplos de mau jornalismo. E de como isso ilustra a falta de pluralidade e de isenção na informação. JPP é aqui, com toda a propriedade, uma espécie de provedor do cidadão, no que aos media diz respeito. E o programa é claramente um exemplo de serviço público. Ora, os baixos níveis de qualidade da maioria do jornalismo que se pratica no nosso país aferem-se, sobretudo, no tipo de tratamento dado aos temas de 1ª página. Mas nem por isso o tipo de apresentação das notícias “menores” deixará de definir também um quadro clínico de negligência e falta de rigor. Muitas vezes, é mesmo através do pormenor que se detectam os principais sintomas. E é precisamente de um exemplo desses que hoje irei falar. Há semanas, no “Portugal em Directo” emitido pela RDP Centro, a seguir ao noticiário das 13h00, um jornalista dessa estação apresentava o “X Festival de Sopas da Serra da Estrela”, em S. Paio, Gouveia. Claro que se não andasse com uma dieta semi-rigorosa às costas, tinha lá dado um pulo, mas a questão não é essa. Em termos globais, se abstrairmos do indiscutível mérito da ideia e da qualidade evidenciada, o facto em si não passa de mais uma iniciativa de promoção local. Todavia, o tratamento dado por esse jornalista foi desastroso. Após a descrição inicial, com aquele à vontade de quem associa uma mostra gastronómica a uma quermesse de feira, informou o auditório indígena que os que ali acorriam estavam (sic) “sequiosos de comer”!!! Sequiosos? Mas de comer o quê? As sopas, presumo! Confesso que, em termos semânticos, é complicado definir a apetência segregada no hipotálamo por uma sopa. Será sede? Será fome? Será uma sede que não chega a ser fome? Será uma fome envergonhada, mascarada de sede? Ou antes uma irreprimível necessidade de um aconchego da alma, por via do estômago, sem demasiado comprometimento? É de supor que todas estas visões contraditórias passaram pela cabeça do jornalista. Se tal ocorreu depois de uma prova das sopas, é de supor igualmente que o paradoxo se transmutou, adquirindo as propriedades do puro disparate. Se foi antes, é de acatar a hipótese de o jornalista pré-comensal ter ficado à mercê do trocadilho semântico de ocasião. Ou seja, o pau para toda a colher dos preguiçosos. E a ocasião produziu um magnífico oximoro (figura de estilo que consiste numa contradição muito intensa e cujo significado é aparentemente absurdo). Vejamos então a definição para “sequioso” no Dicionário Priberam de Língua Portuguesa: 1. Sedento, ávido de água. 2. Seco em extremo, falto de água. 3. Fig. Sedento; ávido; muito desejoso. Como se depreende, o elemento chave é a falta de água. A qual, no limite, também pode ser a metáfora para outros apetites. Que inclui, ora aí está, o apetite de comer, perdoem-me o recurso estilístico. Portanto, não é de descartar a possibilidade de o jornalista, alucinado com os aromas de uma sopa de beldroegas, ter efectuado um trajecto linguístico singular, bizarro mesmo. Ou seja, o percurso que vai de um oximoro a um simples pleonasmo.

Mais à frente, o jornalista entrevista alguns transeuntes. A páginas tantas, questiona um jovem sobre “o que é que andava ali a fazer”!!! Isto na suposição, presume-se, de que o jovem pudesse ser um ET, um adepto de uma claque de futebol em vilegiatura serrana, ou um pré-delinquente a quem foi dado o devido “correctivo das sopinhas”. O mencionado jovem respondeu, sensatamente, que vinha “experimentar umas sopas”. “Sopas?!”, zuniu o jornalista. “Então vocês não gostam mais de bifes e assim?”, acrescentou. Claro que a luminária queria dizer hambúrgueres. Claro que o perguntante estava surpreendido por causa de o jovem estar ali, “normalmente”, e não num estabelecimento de fast food a empanturrar-se de toxinas, ou a fumar um charro, ou a insuceder na escola, ou a jogar ao braço de ferro com um professor numa sala de aula, com um telemóvel de permeio. Claro que esses clichés (temos que chamar as coisas pelos nomes), alimentados em grande parte pelos media, são de tal forma irresistíveis que o nosso jornalista não evitou sucumbir diante deles. Imaginemos que diante da sopa. Precisamente.

2. Algures no pó irisado da memória, chega o lugar da gratidão. Por aqueles que nos amaram (poucos, após esticar o balanço com honestidade, mas vendo bem são esses que contam). Por aqueles que não o souberam ou eu não soube. Pelos erros que tão bem denunciaram o caminho. Pelos outros que não passaram de hesitações. Pelas palavras que esperaram por mim, dividido entre o orgulho e a queda. Pelo consolo da ronda à volta do claustro, escutando a brisa a baixar do grande vazio. Pelo fogo que triunfou, por vezes, no cume da insurreição e das sombras. Pelas cinzas que foram ficando, como uma almofada do tempo. Pelos caminhos só ainda depois caminhos. Pela assembleia de convidados que o vento trouxe e o vento dissipou. Pelo orgulho que tudo rasgou. Pela música que não deixa esquecer. Pelos céus de Van Gogh. Pela poeira onde tudo se irá resumir. E brilhar.

Por: antónio Godinho Gil

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