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Placebos

Esferorragia

Alguém afirmou há uns anos que “a utilização de placebos na prática clínica é inversamente proporcional à inteligência combinada do terapeuta e do paciente”. Mas o que são placebos? Sem ter em linha de conta o nome de um grupo de rock com o mesmo nome, trata-se de substâncias inertes (desprovidas de eficácia terapêutica) mas que podem actuar, através de mecanismos de acção psicológica, se o indivíduo (paciente) julgar que está a tomar um medicamento realmente activo e mais ainda se o próprio terapeuta acreditar nas virtudes do produto ajudando a induzir no paciente a expectativa de melhoras ou mesmo de cura. Trata-se de um dos assuntos mais escamoteados na literatura médica ou leiga sobre assuntos médicos, porque, como alguns por esta altura já terão percebido, pode pôr em causa a honorabilidade da “arte médica”, nomeadamente no que respeita à utilização de medicamentos. Tem sido, no entanto, objecto de atenção e alvo de estudos cientificamente válidos que lhe imputam uma eficácia de, em média, 35 por cento havendo provas de que pode variar entre 10 e 90 por cento (Ian McWhinney), o que, convenhamos, é muito.

O chamado “efeito placebo” baseia-se na falácia de que toda a alteração dos sintomas precedida de um tratamento é necessariamente um resultado específico desse tratamento. Ora isto não é bem assim porque há pelo menos três explicações para uma associação entre tratamento e cura. A primeira é que o tratamento tenha realmente um efeito benéfico. A segunda é o “poder curativo da natureza”, ou seja, na natureza auto-limitada da maior parte das situações mórbidas e consequente retorno à normalidade (saúde) num prazo variável de tempo e na ausência de qualquer tratamento (este aspecto foi, aliás, o principal aliado da “arte médica” ao longo dos tempos). A terceira explicação é o efeito placebo propriamente dito em que, como já foi dito, o reforço mútuo entre a crença do terapeuta no tratamento e a crença e confiança do paciente no terapeuta e na eficácia do tratamento normalmente induz uma melhoria da situação mórbida de grau variável. Por isso a definição de placebo não se deve restringir à utilização de substâncias mas abranger todo e qualquer tipo de terapêutica, mesmo as que não envolvem qualquer agente físico ou químico (e principalmente estas, digo eu) em que o doente apresenta uma resposta biológica ao significado simbólico do tratamento. O próprio terapeuta em si tem um potencial efeito placebo (“ai que médico tão bom, parece que só o falar com ele faz com que a gente fiquemos melhores”).

De há alguns anos a esta parte vem ganhando progressiva importância a chamada “medicina baseada na evidência” que, fruto do cruzamento de dados e validação de estudos demonstrativos da real eficácia de fármacos (meta-análises), teve como consequência o não reconhecimento de eficácia de substâncias até aqui tidas como eficazes sendo evidente que são tão apropriadas para os fins para as quais foram criadas e lançadas no mercado como uma garrafa de água do Luso com a desvantagem de serem muito mais caras e potencialmente perigosas. E a água sempre hidrata. Segundo parece a quarta parte do total de prescrições actuais correspondem a produtos ou esquemas terapêuticos cuja eficácia carece de evidência clínica demonstrada.

Não quero, no entanto, com tudo isto dizer que os placebos não tenham o seu lugar na prática médica. Há “doentes” cujo perfil psicológico exige a prescrição de qualquer coisa (de preferência minimamente ritualizada tipo 20 gotas em meio copo de água três vezes ao dia antes das refeições, excepto ao domingo, feriados e dias santos de guarda). A própria representação social de uma consulta médica, por exemplo, pressupõe um epílogo consubstanciado numa receita para aviar na farmácia. E que diabo, se as pessoas se sentem melhor e os terapeutas com a consciência de que contribuíram para isso, porque não? Mas não faz mal nenhum estarmos avisados do fenómeno. Ou faz?

Por: Vasco Queiroz

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