Arquivo

Pequena fábula infantil

observatório de ornitorrincos

Na história da Capuchinho Vermelho (não estou a falar de Odete Santos) há uma parcela da narrativa que não costuma surgir nos livros tradicionais. No momento em que a Capuchinho entra na casa de sua Avó (segundo os historiógrafos pós-modernos, casa construída com o seu próprio trabalho de mulher adulta e independente, e já toda paga ao banco) e vê o Lobo (recuso utilizar o adjectivo “mau” porque não quero estigmatizar comportamentos alternativos de bichos que sofrem com atitudes persecutórias) na cama da senhora, vestido com a sua camisa de noite, a menina começa a desconfiar e a fazer observações, como se fosse o Cláudio Ramos. “Avó, tens uns olhos tão grandes. E os dentes, tão afiados. E essas orelhas, estão pontiagudas, hã, Avozinha? E as unhas, que compridas estão. Já não as deves cortar há uns meses.” O Lobo, enfastiado com a insistência da garota, replica: “Ouve lá, mas tu vieste aqui trazer comida ou fazer criticas?”

Nem Perrault nem os irmãos Grimm incluíram este comentário do animal bravio nas suas versões da história, provavelmente porque nenhum deles era português. Se houvesse uma versão portuguesa suspeito que seria esse o clímax da narrativa. Após tanta pergunta inconveniente, o Lobo, em vez de ser apanhado na sua tentativa de enganar uma inocente criança, como na versão europeia, não só mandaria calar a miúda, provavelmente com uma recomendação da ERC, como a petiz regressaria a casa para contar aos paizinhos o bem que tinha encontrado a velhota.

Neste charco que habitamos, há ornitorrincos que mandam e gostam pouco de Capuchinhos (que não precisam sequer de ser Vermelhos) curiosos sobre as razões que levam uma Avó a ter orelhas e nariz de Lobo. E tenho ouvido muito uivo contra quem tem dúvidas e questiona as aparências. O governo português, nos últimos tempos, parece sofrer as dores do Lobo. De José Sócrates ou dos seus ministros, espero sempre que respondam às perguntas da oposição ou dos jornalistas, como num quadro famoso dos Monty Python, “Eu não estava à espera da Inquisição Espanhola”. (No sketch dos humoristas ingleses, no momento seguinte entra o cardeal Torquemada e responde “Ninguém espera a Inquisição Espanhola”.)

Na verdade, se a Capuchinho Vermelho fosse portuguesa, nem acharia estranho que a Avó tivesse dentes afiados e garras. E mesmo que franzisse o sobrolho, logo o Lobo lhe ofereceria uns euros para voltar a casa de autocarro, que já era tarde para ir a pé. A Capuchinho, agradecida, deixaria o cesto dos bolos a pensar que a Avó, apesar da metamorfose facial, continuava bem simpática. E enquanto continuar simpática, não tem afinal razões para duvidar que seja a sua avó. Mesmo que no caminho de regresso, em surdina e às escondidas, comentasse com todos os animais do bosque como ficam mal aqueles bigodes à velhinha e que ela devia mesmo lavar aquelas orelhas, que por sinal, estão a ficar enormes.

Numa putativa versão portuguesa o Lenhador não apanharia o Lobo, evidentemente. O operário da indústria da madeira escoltaria a Capuchinho a casa, para que nada lhe acontecesse, e aconselhá-la-ia a não incomodar muito a Avó, até porque com dentes e garras assim, futuras visitas podiam não augurar nada de bom para a pequena. Como sabemos, o respeitinho é a coisa mais bonita que há. Não é por acaso que eu respeito muito pessoas como Mónica Belucci. É que, mesmo já tendo idade para ser avó, Monica pode até ser um lobo que não seria eu que me iria pôr a fazer perguntas se por acaso algum dia a encontrasse na cama.

Por: Nuno Amaral Jerónimo

Sobre o autor

Leave a Reply