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Pela boca morre o peixe

Entrementes

“Quem com farelos se mistura, maus cães o comem.

O que se usa não se escusa.

Muito pode o galo no seu poleiro.

Como a cera é sobeja, logo queima a igreja.

Quem torto nasce, tarde se indireita.”

In Prova de Avaliação de Conhecimentos e Competências, julho de 2014

Quase um mês passado e não resisto a trazer o tema à colação. O tema é o da realização da célebre Prova de Avaliação de Conhecimentos e Capacidades (PACC) que os candidatos a professores realizaram a 22 de julho último. Diga-se desde já que o escriba é, orgulhosamente, professor há três décadas. No entanto, não se veja aqui qualquer atitude corporativista ou de ortodoxia sindicalista.

Muitos seriam os aspetos a analisar na prova. Fazê-lo, escalpelizando-os, daria, pelo menos, para uma tese de uma dessas licenciaturas de Bolonha. Limitar-me-ei por isso a um aspeto que me é querido até por formação académica. Daí a transcrição, no início deste escrito, de parte de um dos exercícios que tem a ver com a interpretação do adagiário popular.

Pois então, mãos à obra…

“Muito pode o galo no seu poleiro.”

É de facto verdade. Sim, que nisto de conhecimento empírico o povinho tem tese de doutoramento. Desta vez bem pôde o galo do alto da cátedra ministerial. Ordenou (cantou) manhã cedo, que é aí que se começa o dia, e toda a capoeira se organizou para que a coisa fosse por diante sem rebuliço de maior. Não sei porquê, vossorias saberão, mas lembrei-me de um certo tempo em que se afirmava que “manda quem pode, obedece quem deve”… Mas, claro que esse tempo já passou e agora vivemos todos em democracia plena…

Pois muito bem, mandou quem pôde, obedeceu quem devia, e, vai daí, concluíram os iluminados da capoeira que esses malandros, esses iletrados, esses analfabetos examinandos tinham dado erros às toneladas na dita prova. Acredito piamente nos classificadores da prova. Acredito, porque ninguém é perfeito, que tenham existido erros e que, muitos deles, não resultem do tacanho Acordo Ortográfico que de acordo tem muito pouco… Acredito que todos nós, do carpinteiro ao médico, do pescador ao economista, do professor ao ministro, estejamos à mercê de um erro ao virar da página. O que não compreendo, e por certo muitos dos que me leem também não entenderão, é a atitude, que mais parece ressabiamento, de vir a público denegrir toda uma classe, tomando claramente a nuvem por Juno. É que, já que estamos a tratar de provérbios, ruim é o pastor que diz mal das suas ovelhas…

E, continuando no adagiário, como quem não se sente não é filho de boa gente, aqui me têm a dissertar sobre o tema até porque, lá estamos nós nos ditados populares, quem tem telhados de vidro não atira pedras ao do vizinho. Não estão a perceber?… Regressem então, apenas por um momento, ao início deste texto e detenham-se no último aforismo. Já leram? Observem melhor a última palavra. Já está?… E que leram vocês? “Indireitem”? Não, não é erro meu, nem sequer é uma daquelas arreliadoras “gralhas “ que, de quando em vez, surgem nos jornais. Está lá assim mesmo na malfadada PACC…

Então esses malandros, esses iletrados, esses analfabetos examinandos, deram erros nas respostas? E quem terão sido esses malandros, esses iletrados, esses analfabetos que deram erros no enunciado?… Pois… lá diz o povo, voltando ao título, que pela boca morre o peixe. Ou, no dizer de um quase iletrado poeta e filósofo, de sua graça António Aleixo:

“Porque será que nós temos

na frente, aos montes, aos molhos

tantas coisas que não vemos

mesmo à frente dos olhos?”

E já agora se me permitem, neste e noutros casos que tais, recorrerei ao mesmo autor para um conselho:

“Vós que lá do vosso império

prometeis um mundo novo

calai-vos, que pode o povo

qu’rer um mundo novo a sério.”

É que… “quem com farelos se mistura, maus cães o comem.”

Por: Norberto Gonçalves

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