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Pai Nosso

Victor Hugo fala-nos do catraio das ruas parisienses como de «um ser que se diverte porque é infeliz», e logo a seguir equipara-o ao «povo-menino que exibe na fronte a ruga do mundo velho». Não creio que o padre Américo Monteiro de Aguiar, natural da freguesia de Galegos, do concelho de Penafiel, onde nasceu aos 23 de Outubro de 1887, tenha alguma vez lido Os Miseráveis, muito mais interessado que se achava em resolver as intrigas da vida do que em senti-la através do enredo dos romances. Mas a caracterização do ganapo urbano, realizada por Victor Hugo na forma que fica transcrita, haveria de lhe merecer o espontâneo referendo, se não entusiástico, pelo menos testemunhante dessa solidariedade que acontece entre artistas e santos.

O ano que decorre, e no qual se cumpre o cinquentenário da morte do Padre Américo, resultante de um trágico acidente de viação, permanece inquinado ainda por vários dramas que incluem a criança como seu protagonista. O processo da Casa Pia, sempre longe do termo, a que se sucedeu entre abusos e homicídios de menores o assassínio de um transexual chamado Gisberta, perpetrado por um grupo de infantes à solta no «bas-fond» portuense, só poderá convidar-nos, e a propósito da efeméride que se comemora, a alguma dolorosa reflexão. Dividida entre a denúncia dos comportamentos pedófilos, suscitadores de compreensível repulsa pública, e a cedência a tentações pedocráticas, porventura menos detectáveis no risco que comportam para a saúde de todos nós, a sociedade que nos contempla parece incapaz de abraçar aquela imagem da criança que o Padre Américo trazia na alma, e que era a de uma natureza respeitável e respeitadora.

A frase tão amiúde citada, e que emergiria como divisa da Obra da Rua, segundo a qual «não há rapazes maus», exigirá interpretações mais complexas hoje em dia do que na época do homem que quis ligar o seu ao destino dos miúdos deserdados. Mas se aqueles que a Casa do Gaiato foi acolhendo à sua sombra não contassem com o afecto que muito exige, e beneficiassem em lugar disso da indiferença que tudo permite, dificilmente se tiraria a prova da legitimidade do moto referido. Não será no entanto por acaso que este aparece sob o «ex-líbris» da Instituição, nem mais nem menos do que «um garoto de braços abertos a pedir o amor do próximo», a quem os companheiros tinham apregado a alcunha de Quim Mau.

Uma colectânea de textos recolhidos por Helena de Sousa Pereira, coordenada por José da Cruz Santos, graficamente dirigida por Armando Alves, e publicada pela Alethéia Editores, constitui bom pretexto à descoberta da estrela que guiou o Padre Américo, e à análise do rasto que deixou. Em escritos de desigual extensão, mas em nenhum discurso poético, o que mais fundo iria talvez na observação de uma tal luz, vemos discorrer sobre a figura do Padre, e sobre a sua Obra, personalidades como Januário Torgal Ferreira e Mário de Oliveira, Diogo Freitas do Amaral e Marcelo Rebelo de Sousa, Ilda Figueiredo e Manuela Eanes, José Carlos de Vasconcelos e Maria Helena Rocha Pereira, Nuno Grande e Urbano Tavares Rodrigues, Albano Martins e Manoel de Oliveira, Jorge Jardim Gonçalves e Germano Silva.

Só o sinal indelével de uma grande singularidade que se consumou, mas que continua de pé apesar das tentativas demasiado óbvias para a derrubar, alcançaria promover a congregação do pluralismo que representam as vozes referidas, e algumas outras, em homenagem de semelhante amplitude. O que o Padre Américo nos transmite perante a estupidez do poder é afinal uma lição para as horas que passam, tecida na largueza mental que exclui a dissolvente questiúncula, no descerramento do coração que posterga o agastado sectarismo, e na vontade de agir que rejeita o vício do protesto.

Deparamos neste belo livro com uma fotografia inesquecível, e que enche o nosso olhar de amabilidade, se por isto entendermos a urgência e o prazer de nos alegrarmos nos outros. O Padre, sorrindo como de costume, está à varanda da Casa, e entre dois vasos de sardinheiras que são as mais pobres, as mais resistentes, e as mais venturosas entre todas as flores. A sineta acabou de tocar para o almoço, e os gaiatos suspenderam os seus ofícios para se reunirem à mesa corrida da amizade. Assim de facto, e contra a ameaça das trevas, não há, não haverá rapazes verdadeiramente maus.

Por: Mário Cláudio

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