1. África é aqui ao lado mas quando lemos livros sobre África ou ficções neste continente, já sabemos com o que podemos contar: estranhezas, crenças e magia, incapacidade de transformação das sociedades. A corrupção endémica, o culto do chefe, a aceitação da tradição, a cultura do “agora é a minha vez” subjaz a todo o discurso oficial que se encarrega de disfarçar com o politicamente correto o atraso de séculos e a dificuldade em mudar. Só se muda se se assumir um desafio e se a coragem individual ou coletiva não temer o confronto. Entretanto o medo de mudar dá asas aos maiores despotismos e leva os cidadãos a desistir ou a ser imolados no altar da continuidade.
Na obra autobiográfica “O rapaz que prendeu o vento”, William Kamkwamba é o exemplo de um jovem do Malawi que, diante da «inevitável» repetição da História, sente em si o dom da criatividade e não hesita em remar contra a maré da magia e da inevitabilidade numa sociedade de subsistência em que se luta por conseguir o mínimo para não morrer de fome. E as ocasiões para morrer de fome não faltam. Numa região onde a quase monocultura do milho afunila as hipóteses de sobrevivência à menor seca, onde a falta de receitas do milho corresponde à impossibilidade de frequência da escola, um adolescente encontra, apesar de tudo, um motivo de interesse que dá lições aos alunos do nosso sistema de ensino. A partir de um manual que o protagonista consulta nos tempos que a escola não lhe ocupa (por não ter dinheiro de propinas para a frequentar), consegue a partir de ferro-velho criar um invento gerador de energia, que lhe dá o reconhecimento (difícil), primeiro da sua família, depois da aldeia e finalmente da comunidade científica internacional. O próprio país será o último a reconhecer o talento de William. Como em muitos sítios, afinal. Mas a mensagem é fortemente otimista: como acontece com as ervas daninhas (que aguentam as piores geadas), a salvação é possível, com pele rija, astúcia e resiliência.
2. A fome é uma das sensações mais angustiantes que pode haver, sobretudo se essa sensação for acompanhada do desânimo de a combater e da falta de esperança no futuro. “Passar fome” é diferente de “ter fome” ocasionalmente ou de esperar ansiosamente pela hora de jantar. É «sentir um cágado a subir as paredes da barriga pelo lado de dentro», como dizia Eduardo Olímpio. No caso de William Kamkwamba, no Malawi, ao afrontar dois anos de seca, correspondia a um progressivo abandono da comida à medida que os sacos de milho se iam esgotando no celeiro. Primeiro 4 refeições, depois três, depois duas, finalmente uma apenas, tomada à noite e regada em seguida por água bastante para dar a impressão de enfartamento. Pelas ruas, emigrantes que corriam o país a mendigar ou a oferecer-se para trabalhar à conta de um prato de farinha. Os pais de família, preocupados em restabelecer o mínimo de recursos para os lares, saíam, corriam terras e terras, esforçavam-se demais e acabavam por ser eles os mais vitimados pela escassez. Em outras alturas a fome associava-se à cólera que grassava na população.
Curiosamente na escola a fome era a melhor auxiliar do professor: ninguém tinha dúvidas, porque ninguém conseguia suportar aquele tempo parado a pensar de estômago vazio. O que os alunos queriam era ir para casa procurar algum vestígio de comida. Pensem nisso quando tiverem “um pouquinho” de fome ou o almoço estiver atrasado.
3. Nesta onda de procura de referências de otimismo, refiro também Jean Giono, autor francês de que agora li “Regain” (Recomeço, não conheço a tradução em português). Nesta obra o abandono rural no início do século passado é compensado pelo olhar do escritor poeta que pinta as aldeias polvilhadas de sagrado por alguém que as observa com devoção e que acredita sobretudo na sua fertilidade. Equilibrar a fertilidade da terra com a fertilidade humana e o povoamento é o desígnio. Para começarem a gostar deste autor, imbuído na fé que ultrapassa fronteiras e obstáculos, comecem por “O homem que plantava árvores”, parábola humana que prova que é possível acreditar no homem e transformar uma serra escalvada. É possível quando o homem é capaz de alargar os seus horizontes mesmo que viva sozinho e aproveite a dor pessoal para se vingar do destino. É possível quando os pequenos grupos fechados, habituados a armadilhar conflitos, se abrem a mais pessoas.
Feliz Ano Novo!
(William Kamkwamba e Bryan Mealer, “O rapaz que prendeu o vento”; Jean Giono, “O homem que plantava árvores”)
Por: Joaquim Igreja