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Os meus pobres dentes

bilhete postal

Nasci com uns genes difíceis e eles reflectiram-se sobretudo na imagem de uma boca trucidante. A minha palavra é como um tractor, lavra pela vida dos outros e baliza o caminho a impropérios e chavões. Por vezes jocoso, outras com rancor, algumas de fininho, assim vou entrando na discussão e na conversa. Uma boca destas, com veneno de surucucu, trincha de pedreiro e gume de talhante só podia ter características peculiares. Mordo a granel porque não possua guias caninas. Os caninos orientam a mordida mas os meus não estavam lá e por isso a dentada era para a frente e para o lado. Depois percebi que o juízo se tinha deitado à hora de nascer. Na ortopantomografia podemos ver os quatro artistas deitados. Não há siso que cresça daquela maneira. Assim se me escapou o juízo numa longa sesta. Com esta boca infame, que de noite se ruía a si própria – bauchista ao que me disseram, fui raspando os dentes uns nos outros. Nas longas noites em que não falo dou em raspar os coitados. Com isto tudo lancei um desafio ao Luís Marques – estomatologista da Guarda – para me orientar a vida. Ele dedicou-se à boca como é bom de perceber. Assim aparelhou-me, corrigiu-me os caninos e abriu-me um sorriso americano. Mais amarelo que os deles claro está. Afinal o veneno dá tártaro e o bauchismo arrasa-lhes o tamanho.

Desde que tirei o aparelho que parece que falo melhor das pessoas, que lhes dedico mais amizade. Estou outro, mais dedicado, mais tolerante, menos rancoroso. O Luís Marques – que me orientou durante estes últimos quatro anos – tem o mérito da persistência, de acreditar numa ideia, de perceber deste assunto a rodos e assim merece que lhe agradeça em público. O meu mal é o dos peixes, o signo com que nasci, hei-de morrer pela boca! O Luís insiste em o evitar.

Por: Diogo Cabrita

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