Há poucos assuntos em que tantas vezes os actores políticos tenham mudado de opinião como o das deduções fiscais. Lembro-me de quando Bagão Félix acabou com os benefícios fiscais para os PPR e como o PS se opôs à medida, fez dela bandeira de oposição e a revogou. Lembro-me de como José Sócrates se atirou ao pescoço de Francisco Louçã porque o malandro disse que queria reduzir as deduções fiscais. Lembro-me de como o PS resolveu fazer, de forma mais radical, aquilo que Louçã propunha e como o PSD e CDS, que tinham apoiado o fim das deduções para os PPR, se revoltaram contra este “ataque à classe média”.
As deduções fiscais são ineficientes. Tornam o sistema fiscal complexo e virtualmente impossível de fiscalizar. São regressivas. Ajudam mais quem tem mais e menos quem tem menos. São irracionais. Retiram aos serviços públicos recursos para financiar a oferta privada do que o Estado já oferece gratuitamente. São injustas. Não faz sentido, no momento em que se fecham escolas em aldeias, financiar colégios privados na cidade. E são um engano. Ao retirarem recursos aos serviços públicos e ao afastarem deles a classe média degradam duas vezes o Estado social. Com o que se perde em benefícios para alguns podia-se baixar os impostos a todos.
A importância política dada a este tema – é a condição do PSD para aprovar um novo Orçamento – revela uma democracia desigual. Apenas um terço dos contribuintes faz deduções fiscais com despesas em educação ou em imóveis e apenas 15 por cento em PPR. E o único caso em que há uma maioria de beneficiários é em despesas em saúde, onde contam sobretudo os medicamentos, que ninguém devia querer pôr em causa. E, no entanto, o orçamento está refém desta batalha. A maioria não usa, mesmo que possa, tal instrumento fiscal com o mínimo de eficácia. Não põe os filhos em colégios, não vai a clínicas privadas. Quando muito, usa-o, se puder, para livros escolares, dentista, medicamentos e pouco mais. Ou seja, para aquilo que o Estado não lhe dá e devia dar. Esses, e mais alguns por razões ambientais, culturais ou de desenvolvimento tecnológico, são os únicos benefícios fiscais que deveriam sobreviver. Só assim seria justo.
Como se explica que qualquer coisa de que beneficia uma minoria, num momento em que se fazem cortes brutais em prestações sociais e em serviços públicos, pondo em causa a dignidade de vida dos mais pobres, seja o alfa e o ómega do próximo orçamento? Arrisco-me a dizer que a quase totalidade dos que me estão a ler (que fazem parte da minoria que lê jornais em Portugal) faz deduções fiscais significativas. Que a quase totalidade dos que marcam a opinião publicada também. Que quase todos os políticos também. Que para quem tem algum poder, pouco que seja, este é um assunto compreensivelmente importante. A centralidade das deduções fiscais no debate político não resulta da sua importância para o conjunto da sociedade. Resulta da importância social de quem delas beneficia. Não são os ricos. São a minoria que não é pobre.
Não são só os recursos e os sacrifícios que estão mal distribuídos. É o poder. E uma coisa é causa e consequência da outra. Haver alguém que governe tendo em conta o que é melhor para a maioria e não o que é melhor para quem tem mais capital social para pressionar o poder é o maior desafio para qualquer democracia. Suspeito de que, mais uma vez, é o desafio se vai perder.
Por: Daniel Oliveira