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Os dependentes da crise

A relação entre a crise e o consumo de substâncias – lícitas ou ilícitas – é volátil e já preocupa os espaços de recuperação da Guarda. Consumo abusivo e perda de capacidade aquisitiva podem representar «regresso ao passado», avisa Carlos Brito.

«Estamos a recuar 30 anos: bebe-se para esquecer ou enfrentar algum tipo de situação». Carlos Brito mostra-se preocupado na hora de comentar uma eventual relação entre a crise e a dependência alcoólica porque a «doença tem efeitos devastadores», que se somam aos decorrentes da atual conjuntura económica. «Com o alcoolismo crónico vem a violência doméstica, a falta de motivação para procurar emprego e o fogo posto», lembra o presidente do Centro de Alcoólicos Recuperados da Guarda (CAR).

O desemprego e a falta de dinheiro podem ter um papel preponderante no aparecimento de novos dependentes, já que muitas vezes provocam mudanças na rotina das pessoas. «Não tenho dúvidas que o desemprego leva muitos a ocuparem o tempo nos estabelecimentos que vendem bebidas alcoólicas», assegura. Para o responsável, a dependência tem resultados práticos na subsistência das famílias: «Há uma degradação do indivíduo e dos seus familiares porque esquece as responsabilidades. São casos de tortura, pois não há dinheiro e ainda se lida com um consumidor abusivo», sublinha Carlos Brito. Por outro lado, as dificuldades económicas também influenciam a capacidade aquisitiva, pelo que «há quem vá para os estabelecimentos e espere que alguém lhe pague um copo», refere.

O mesmo acontece aquando do internamento, uma vez que há «pessoas sem dinheiro que não têm cuecas ou calças para levar», conta. O dirigente do CAR vai mais longe e lembra o passado das “sopas de vinho”: «Temo que digam que matam a fome, como fez o Salazar, e se volte ao consumo nas aldeias e a falsos conceitos», receia, considerando que «não há nenhum alerta para os perigos que se correm». Já quanto ao centro, Carlos Brito destaca os «cerca de 80 por cento de casos bem-sucedidos», o que faz com que já se fale do CAR com «naturalidade».

Por sua vez, Rui Correia, diretor do Centro de Respostas Integradas (CRI) da Guarda, realça que «não percecionámos um crescimento do problema nos últimos anos, mas a curto prazo pode vir a ser expectável». Isto porque, «está comprovado cientificamente que os estados emocionais negativos são uma das principais causas de recaída no consumo de substâncias», afirma, dando como exemplo as depressões e a ansiedade. Todavia, «houve um decréscimo do consumo de álcool, tabaco e drogas ilícitas (heroína, cocaína e cannabis) e uma estabilização no ecstasy e LSD», revela, referindo estudos como o Inquérito Nacional ao Consumo de Substâncias Psicoativas na População Geral e o Relatório Europeu sobre Drogas. «É muito provável que a falta de dinheiro esteja relacionada com a descida dos consumos, mas seria redutor da minha parte pensar que se deve só a isso», esclarece, salientando o papel de «um conjunto de políticas implementadas» a nível nacional e europeu.

Porém, o diretor do CRI entende que a aplicação das medidas deveria ser acompanhada pelas escolas, «por exemplo, na disciplina de Formação Cívica, aproveitando para lhe dar uma outra amplitude», diz. «A droga não é um problema dos outros, é de todos enquanto cidadãos», sublinha Rui Correia, que justifica os «bons resultados» com «respostas baseadas em evidências científicas». Apesar disso, o responsável diz-se apreensivo com o sucesso na intervenção: «Temos algum receio que possa haver um desinvestimento no problema, pois o facto de não se ver tanto pode fazer com que se pense que não existe», alerta.

CRI reclama lugar no Parque da Saúde

«Há muito tempo que reclamamos a saída do centro da cidade para um local discreto que preserve a privacidade dos nossos utentes», refere Rui Correia. O CRI situa-se em plena Praça Luís de Camões, levando a que alguns utentes se desloquem à consulta descentralizada em Gouveia «por vergonha», conta. Na opinião do diretor, o espaço deveria ser transferido para o Parque da Saúde: «Nós somos dependentes da Administração Regional de Saúde do Centro, do Ministério da Saúde, pelo que não vejo outra solução», afirma. «Julgo que tem faltado clarividência para nos levarem para onde deveríamos estar», assevera.

Porém, o responsável destaca a «cooperação exemplar» com a ULS da Guarda, cuidados de saúde primários e centros de saúde, nomeadamente na partilha de recursos, o que representa «algo relativamente inédito na região centro», adianta. O centro tem três diagnósticos aprovados, que vão permitir a abertura de concurso público para intervir nos concelhos da Guarda, Seia e Gouveia – aqueles que registam mais casos –, bem como no estabelecimento prisional. «Satisfaz-nos muito, até porque nesta altura é difícil encontrar forma financiadas de intervir na comunidade», anuncia. O CRI pertencia ao Instituto da Droga e da Toxicodependência, que foi extinto, estando em processo de integração na ARS Centro.

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