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Os Cultos da Carga

Escreveu Arthur C. Clarke que “qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia”. Richard Dawkins (A Desilusão de Deus, Casa das Letras, 2007) mostra-nos como a ignorância e a avidez criaram, em pleno século XX, novas religiões. Quando os nativos de algumas ilhas da Melanésia e da Nova Guiné viram chegar os militares aliados, em plena Segunda Guerra Mundial, maravilharam-se com as novidades que os acompanhavam. Admiravam-se ainda com o facto de eles não trabalharam, pelo menos no entendimento que tinham de “trabalho”. Quando alguma coisa se estragava, os brancos esperavam que chegasse um avião, ou um navio, com peças novas. A comida vinha pelos mesmos meios, como os medicamentos (eles próprios muito próximos da magia e do sobrenatural). Para os chamarem (convocarem?), os brancos usavam aparelhos mágicos, como o rádio e o telégrafo. Por puro mimetismo alguns nativos começaram a abrir pistas na floresta, destinados a atrair os aviões, plantaram antenas feitas de bambus e construíram junto ao mar docas rudimentares, onde pudessem atracar os barcos. Não tardou que alguns deles começassem a elaborar teologias em redor desses desejos simples, e ingénuos.

Ingénuos ou não, fenómenos desses apareceram em vários locais, mais ou menos ao mesmo tempo. A teologia criada comportou a figura de vários messias, um dos quais, baseado num marinheiro americano chamado pelos nativos de John Frum, ainda hoje é venerado e esperado (quando se foi embora não deveria ter prometido: “I´ll be back!) na ilha de Tanna, nas Novas Hébridas. Essas religiões têm a sua própria escatologia e quase todas elas prevêem um apocalipse, seguido de perto pelo paraíso: a chegada de uma carga abundante, trazida por um cargueiro ou um aeroplano – que trará também o messias. É suposto Brum regressar no dia 15 de Fevereiro e, todos os anos, é celebrada uma cerimónia religiosa nessa data, em honra do seu esperado regresso. Frum não chega nunca e os anos vão passando. Interrogado sobre o aparente falhanço da sua religião por David Attenborough, um devoto respondeu-lhe “e vós, não esperais por Jesus Cristo há 2000 anos?”

Bem podemos rir-nos dos Melanésios, mas estão-nos muito mais próximos do que gostaríamos de pensar. John Frum não descerá sobre nós num avião dos tempos da Segunda Guerra Mundial, mas a carga continua a chegar. Todos os nossos problemas continuam a resolver-se em volta das mercadorias que possam compor uma carga abundante, porque fabricá-las cria emprego e porque todos os sumos sacerdotes dos grandes partidos nos prometem que irão prover mais carga, e de melhor qualidade, do que os outros. E na Guarda vai abrir em breve uma catedral inteiramente dedicada ao novo culto. Oremos.

Por: António Ferreira

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