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Os bosques primitivos da Beira

Nos Cantos do Património

Agora que o calor aperta e os fogos queimam os últimos nichos da floresta que escapou ao inferno do Verão passado, apetece-nos escrever sobre uma espécie arborícola da Beira Interior quase resistente ao fogo e com grande simbologia desde tempos muito recuados. Actualmente apenas a encontramos em pequenos recantos protegidos por autênticas muralhas de penedos onde até as labaredas têm dificuldade em chegar. Trata-se do carvalho (quercus em latim), que desde há muito se destaca na paisagem da Península Ibérica e foi a árvore sagrada por excelência. Com efeito, pela sua imponência, frescura e beleza, o carvalho, nas suas múltiplas variedades (carvalho negral, o carvalho alvarinho e o carvalho arbustivo, a azinheira e o sobreiro), tem marcado a religião, os mitos e as tradições de diversos povos. Desde a Pré-história o quercus tem alimentado homens e animais.

Atentemos nos principais indícios da relação milenar entre o Homem e a árvore sagrada na Beira Interior.

A utilização da madeira e da bolota desta espécie pelo Homem está documentada, na Beira Interior, desde tempos pré-históricos. Diversos estudos palinológicos e antracológicos têm demonstrado que no período Calcolítico, ou seja, há cerca de 5000 anos, a vegetação do Vale do Côa era dominada pela espécie quercus, sobretudo pelas espécies mediterrânicas — carvalho português, azinheira e carrasco – mas também por matas e matagais. O clima não seria muito diferente do actual. Em geral, as populações pré-históricas do Côa viviam sob um clima com fortes amplitudes térmicas ao longo do ano e fraca precipitação anual. Nestas condições, o carvalho adaptava-se bem aos solos pedregosos retendo, simultaneamente, a água durante todo o ano. As ribeiras e os rios da região, especialmente o rio Côa, levavam um caudal regular ao longo do ano, sem nunca secarem completamente como hoje se verifica.

Nesta paisagem conquistada pelos bosques de quercus, os pequenos grupos humanos escolhiam as clareiras dos planaltos e dos vales dos rios onde encontravam alimentos em profusão. Para além da caça disponível, a bolota era tão abundante que os outros cereais serviriam, apenas, para complementar a dieta alimentar destas populações pré-históricas.

Com efeito, a utilização da bolota na alimentação dos vários grupos humanos que habitaram o Vale do Côa e toda a Beira Interior está atestada no registo arqueológico de alguns povoados desde, pelo menos, meados do IV milénio antes Cristo. Nos sítios arqueológicos do Ameal, em Canas de Senhorim e no povoado da Malhada, em Fornos de Algodres, ambas na bacia do rio Mondego, foram descobertas algumas lareiras associadas a fossas escavadas no solo destinadas à torrefação da bolota. No pequeno povoado do Ameal foram mesmo recolhidas diversas bolotas carbonizadas no fundo de silos escavados no interior de cabanas. Estas cabanas eram construídas apenas com ramos de árvores e protegiam homens e alimentos das intempéries. A datação destas bolotas carbonizadas, através do método do Carbono 14, permitiu confirmar a ocupação do sítio em torno do início do III milénio antes de Cristo.

*ARA- Associação de Desenvolvimento, Estudo e Defesa do Património da Beira Interior

Por: Manuel Sabino Perestrelo

(perestrelo10@mail.pt

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