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Os bobos da festa

1. O grupo parlamentar do PS prepara-se para introduzir no Orçamento do Estado uma disposição mediante a qual o montante das pensões de alimentos fixadas por tribunal a favor dos filhos passam a abater apenas 20% como dedução à colecta em IRS, em lugar dos 100% dedutíveis à matéria colectável que desde sempre vigorava. Traduzido por miúdos, isto significa que a pensão fixada por um tribunal na decorrência de um divórcio passa a ser tratada como um rendimento e para ambas as partes: para o ex-cônjuge que vive com os filhos e a recebe em nome deles (o que já é incrível), e também para aquele que a paga, o que seria impensável. Trata-se, portanto, de mais um aumento encapotado do IRS, justificado com queixas recebidas da Associação das Famílias Numerosas, que considerariam que os divorciados eram beneficiados fiscalmente em relação aos casados. Para obviar então a essa suposta discriminação, o PS, em lugar de aliviar a carga fiscal sobre os casados, resolveu antes agravá-la sobre os divorciados: eis como se acaba com a discriminação.

‘Esqueceram-se’ apenas de dois pormenores. Por um lado, os divorciados que não têm os filhos a cargo não recebem o abatimento fiscal que recebem os casados – o que significa que, a partir de agora, não têm o benefício de serem casados mas passam a ter o castigo de serem divorciados. Por outro lado, ‘esqueceram-se’ também que a grande maioria dos divorciados volta a casar-se e, em muitos casos, volta a ter filhos – o que implica não um alívio mas sim um agravamento da sua situação económica.

Não contente com isto e ao mesmo tempo que o seu Governo anuncia medidas financeiras e fiscais de apoio aos fabricantes do sector automóvel, o grupo parlamentar do PS propõe também o agravamento da carga fiscal para os compradores de automóveis. À primeira vista, parece um absurdo: com a economia em crise e o consumo estagnado, julgar-se-ia que a melhor governação seria a que procurasse medidas para relançar o consumo, não para o desanimar. Mas, de facto, não é absurdo, faz todo o sentido, embora seja maquiavélico: a ideia é penalizar a classe média, justamente tida como a que sustenta o grosso dos impostos directos individuais e a que irá continuar indefinidamente a sustentar o consumo, por mais impostos que lhes metam em cima. Sobretudo a classe média, que vive exclusivamente do seu trabalho, que não foge ao fisco, que não reclama subsídios do Estado e que sabe que, se não pagar o imposto, vão-lhe à casa ou ao ordenado sem apelo nem agravo. Se você é grande accionista do BPN ou do BPP e deve 500 ou 750 milhões, não se preocupe que tudo será feito para acorrer em seu auxílio. Nos anos bons, cobram-lhe não mais de cerca de 15% efectivos sobre os seus extraordinários lucros (os que não estão escondidos em “off-shores”); nos anos maus, acodem-lhe aos prejuízos. Mas se você tem o azar de ser tributado apenas no IRS e pelo seu trabalho, não há anos bons nem maus: facilmente lhe levam 42% dos seus rendimentos e começam a debitar juros no primeiro dia de incumprimemto.

Ciclicamente, Governo e oposições falam em descer impostos. Mas falam apenas do IRC sobre as empresas ou de impostos indirectos, como o IVA. Jamais, em caso algum, se ouve falar em descer o IRS sobre a classe média. E a razão económica é fácil de compreender: grande parte do país – muitas vezes visto como o ‘sector produtivo’ – vive ‘alavancado’ (como gostam de dizer os economistas) na infinita paciência dos camelos que todos os anos, sem falhar, entregam ao Estado, só em impostos directos e Segurança Social, metade do produto do seu trabalho. E presume-se que assim será para sempre. Mas se um dia eles se revoltarem ou não puderem mais pagar, esqueçam todo o contencioso corrente: aumento de pensões, carreira do funcionalismo público, TGV e Alcochete, apoio às empresas, cobertura à banca. O país fecha, falido. Porque Portugal não tem petróleo, nem ouro, nem diamantes; não tem produtividade nem competitividade. Tudo visto, o país só tem duas fontes de riqueza, até aqui infalíveis: a generosidade de Bruxelas e o sacrifício fiscal da classe média.

2. E, agora que estamos em época fiscal natalícia – isto é, pagamento do remanescente do IRS de 2007, mais pagamento por conta do IRS de 2008 – deixo aqui um desabafo: um só euro que o Estado venha a gastar no BPP – seja através de dinheiro das Caixas ou do Fundo de Garantia, seja sob a forma de aval dado a empréstimos de outras entidades – será um euro roubado aos contribuintes. É perfeitamente legítimo, embora talvez não muito prudente, deixar que se instale um banco unicamente dedicado a gerir fortunas investindo no mercado mobiliário. E, se tudo correr bem, parabéns a quem arriscou confiar as suas economias aos gestores do banco e parabéns a estes que as souberam valorizar. Até é legítimo que o presidente do banco fale em “caso de sucesso” e que lance um livro a enaltecer os seus méritos de gestor (embora fique a ironia irrepetível de a aceleração da crise ter feito coincidir o dia do lançamento do auto-elogio literário com o dia em que se ficou a saber que ele estava desesperadamente a tentar que o Banco de Portugal lhe emprestasse 500 milhões de urgência para evitar a falência do “caso de sucesso”…). Mas se as coisas acabam por correr mal, se a grande visão estratégica da evolução dos mercados e das bolsas se revela absolutamente errada, por que é que aqueles que andaram a poupar para pagar impostos e sem a ambição de enriquecerem rapidamente e sem esforço, devem ser chamados a pagar os prejuízos dos outros?

Se já para o BPN pouca verdade havia no argumento de salvaguardar as poupanças dos clientes ‘inocentes’ (mas que escolheram o BPN porque lhes pagava anormalmente mais…), no caso do BPP esse argumento não resiste a nenhum critério de verdade ou de justiça social. Se os prejuízos dos investimentos de risco no BPN devem ser cobertos pelo Estado, então também terão de o ser os prejuízos de todos os que, noutros bancos ou individualmente, tinham acções ou obrigações cujo valor a crise varreu. E todos aqueles a quem a vida correu mal e a crise não ajudou. E com que dinheiro se fará essa monumental operação de resgate nacional? Sobe-se o IRS dos camelos para 45% e acrescentam-se mais uns anos e uns milhões aos encargos com a dívida pública que vamos deixar às gerações seguintes?

Por: Miguel Sousa Tavares

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