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Origens 89’09

Theatrum mundi

É hoje banal dizer que a queda do muro de Berlim marcou o início de uma nova era, não só nas relações internacionais, mas também no estudo académico da disciplina que tem o mesmo nome – Relações Internacionais. Testemunhei ambos inícios faz agora vinte anos, em primeira mão, e as palavras que se seguem são uma genealogia dessas origens.

Tinha dezoito anos quando o muro caiu e encontrava-me à espera de entrar na Universidade. Enquanto a Europa acolhia com perplexidade e júbilo a mudança política, o ensino superior em Portugal vivia momentos conturbados e o ano lectivo só começaria no início de Janeiro seguinte. Visto à distância, o atraso parece-me agora providencial. Permitiu-me seguir pela televisão – com todo o tempo do mundo, e sem ter que me dedicar às sebentas que já me esperavam no palácio Burnay da rua da Junqueira – esses momentos libertários de uma Europa, e de um mundo, que desconhecia por completo.

Lembro-me dessa primeira aula com o professor Adriano Moreira, no palácio Burnay, sob o signo da queda do muro. Os tempos desafiavam a compreensão do mundo, lembro-me que repetiu, e em seguida distribuiu o seu último livro por todos os alunos da turma para demonstrar – foram estas as suas palavras – que bibliotecas inteiras haviam de repente ficado obsoletas com os acontecimentos dos meses anteriores. Lembro-me dessa aula com a gratidão que se sempre é devida a quem abre caminhos e nos ajuda a construir uma visão própria do mundo. Lembro-me dela com o brilho de que dispõem apenas as descobertas essenciais e as coisas excitantes da vida, a origem das ideias mais caras e que nos acompanham até ao fim. Foi nessas aulas que descobri Václav Havel, que comecei a perceber o sentido da política e que intuí a importância da relação entre identidade, responsabilidade e autenticidade. Escrevi-lhe uma carta em 2001, quando já era presidente da República Checa (e que não sei se alguma vez chegou a ler), a acompanhar um exemplar da minha tese de mestrado., um texto a que pus o título de “Dear Mr Havel” (título e conteúdo numa alusão explícita à carta aberta que ele próprio escrevera, em 1975, ao presidente comunista da Checoslováquia): “[p]assaram vinte e seis anos, vivemos ambos em sociedades ocidentais, democráticas, liberais e que muitos acreditam ser o fim da história. E no entanto, a mesma falta de autenticidade, a mesma dificuldade de comunicação, a mesma auto-complacência por parte das sociedades e dos governantes, o mesmo esquecimento de que a responsabilidade é o eixo fundamental da identidade humana. E a mesma satisfação com uma normalidade que sistematicamente exclui, que produz um passivo pesado e que serve os interesses dos poderosos, ignorando as vítimas e os sem-poder da era global. Enfim, a mesma e crescente dificuldade de concentração para compreender o mundo real como problema filosófico.”

Passaram vinte anos desde a queda do muro de Berlim e o início da reconciliação europeia. Os antigos satélites soviéticos são hoje membros de pleno direito da UE e um outro checo, Václav Klaus, acaba de levantar o último obstáculo – ele próprio e a sua assinatura – à entrada em vigor do Tratado de Lisboa. E no entanto, a mesma necessidade de recordar a responsabilidade de Europa na criação de um mundo mais inclusivo, sustentável e equitativo. A mesma necessidade de recordar o momento em que muro caiu, ou foi derrubado – como sublinha alguns – para insistir no valor fundacional que é a construção de pontes na história da Europa.

Por: Marcos Farias Ferreira

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